
O brasileiro Paulo Abrão é vetado para que possa assumir um novo mandato no cargo de secretário-geral da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A medida abre uma crise inédita no sistema da Organização dos Estados Americanos (OEA).
A CIDH é um órgão vinculado à OEA e, nas últimas seis décadas, manteve um papel central no monitoramento independente das violações de direitos humanos no hemisfério. Missões de investigação da entidade para a Argentina em plena ditadura em 1979 e outras ações da Comissão foram consideradas como históricas.
Apesar da vinculação, a Comissão é autônoma. Mas o secretário-geral da OEA, Luís Almagro, decidiu não avançar no processo de renovação do mandato do brasileiro, no que está sendo acusado pela Comissão como um “grave ataque contra sua autonomia e independência como o principal órgão” da entidade.
Abrão foi escolhido para o cargo em 2016 e, neste mês, teria seu mandato renovado. Por unanimidade, a Comissão Interamericana aprovou em janeiro o nome do brasileiro para o período até 2024. Mas o nome do jurista acabou sendo bloqueado por Almagro.
Antes de seu trabalho na CIDH, o brasileiro foi o presidente da Comissão de Anistia do Brasil, Secretário Nacional de Justiça e presidente do Comitê Nacional para Refugiados.
Durante seu mandato na agência continental, ele denunciou violações em diferentes países, inclusive na Venezuela, Colômbia, Bolívia, EUA e Brasil. Ele chegou a visitar o projeto de muro que os americanos pensavam em construir na fronteira com o México para denunciar a situação. Já Almagro é visto como uma pessoa próxima ao governo americano.
Ainda em 2019, cinco governos, entre eles o de Jair Bolsonaro, submeteram uma carta ao gabinete de Abrão. Nela, os países sugeriam que a CIDH “respeitasse a autonomia dos estados”, um recado que foi recebido como um alerta sobre as críticas que ele estava tecendo sobre a situação de direitos humanos nesses locais.
Na carta, o Itamaraty e os demais governos apontavam que os estados têm o “direito” de primeiro tentar dar uma resposta a uma violação usando suas próprias instituições. O documento também pedia que a CIDH levasse em consideração as realidades políticas, econômicas e sociais dos países ao determinar reparações às violações.
Um ano depois, é o mandato de Abrão que é vetado. “Em 15 de agosto de 2020, último dia da vigência contratual, o Secretário Geral da OEA informou à CIDH, sem consulta prévia, sua decisão de não “avançar no processo de nomeação do Secretário Executivo” da CIDH”, disse a Comissão.
“Na prática, essa decisão se traduz em uma recusa de prorrogação do contrato de trabalho. A Comissão anuncia à comunidade internacional que esta decisão unilateral do Secretário Geral constitui um flagrante desrespeito à sua independência e autonomia, buscando a separação de fato do Secretário Executivo, e anular a decisão de renovação adotada 8 meses antes pela CIDH”, denuncia.
“Chama a atenção da Comissão o fato de que durante este período não recebeu nenhum questionamento do Secretário Geral sobre a validade do procedimento de renovação”, alertou.
Para justificar a decisão, Almagro citou dois relatórios como base para sua decisão. Um deles era sobre os poderes do Secretário Geral em relação ao processo de nomeação do Secretário Executivo. A Comissão, porém, rejeita tal interpretação.
“Dado que o poder de nomear e retirar pessoal de confiança de suas funções é indispensável para que a Comissão cumpra seu mandato de supervisão e promoção dos direitos humanos no Hemisfério, as normas sobre as quais o sistema interamericano de direitos humanos foi construído respondem à necessidade de salvaguardar suas competências e autonomia institucional, de modo que os atores externos não possam determinar quem ocupa esses cargos, muito menos quando eles devem ser destituídos do cargo”, apontou.
Denúncias contra o brasileiro
Um segundo informe que baseou a decisão de Almagro foi um relatório confidencial da Ombudsperson da entidade. Fontes dentro da entidade indicam, na condição de anonimato, que o brasileiro recebeu mais de 60 denúncias contra sua gestão para o período de 2019, inclusive de contratações de funcionários que não teriam seguido processos regulares.
Segundo a CIDH, porém, não há explicações para o fato de que a entidade tenha esperado até os últimos dias do contrato de Abrão para submeter sua avaliação. O documento, segundo fontes, estaria pronto desde novembro de 2019. Mas só agora foi utilizado. A Comissão também insiste que sempre esteve disposta a avaliar as.denúncias.
“Neste sentido, é inadmissível que se tente usar um relatório institucional confidencial da Ombudsperson ou informações de que uma investigação administrativa está sendo iniciada como base para uma decisão sobre a não renovação administrativa do Secretário Executivo da CIDH, em clara violação às reiteradas normas do Sistema”, aponta a Comissão, que insiste que a presunção de inocência do brasileiro deve ser respeitada.
No comunicado, a entidade elogiou o trabalho do brasileiro. “Graças à sua liderança, a Comissão conseguiu fortalecer um acesso à justiça interamericana mais eficaz e acessível para as vítimas de violações de direitos humanos nas Américas, o monitoramento integrado e oportuno e o fortalecimento das ações de cooperação técnica”, destacam.
Segundo a entidade, graças a sua autonomia e independência reforçadas, a CIDH realiza seu trabalho de “forma imparcial, livre de qualquer influência política e é um exemplo e uma referência para o mundo”.
“A CIDH reitera seu voto de confiança na renovação do mandato do Secretário Executivo, expressando sua disposição de dialogar com o Secretário Geral e todos os órgãos da OEA a fim de alcançar uma solução que respeite a autonomia e a independência da Comissão”, afirmou o órgão.
A entidade ainda alerta que a OEA até agora não repassou a totalidade dos recursos aprovados pela Assembleia Geral para o funcionamento da Comissão. O alerta é de que tal medida “tende a enfraquecer a CIDH”.
“Ao longo de seus 61 anos de história na defesa dos direitos humanos, a autonomia e independência da Comissão Interamericana foram fortalecidas e defendidas a todo custo como um dos pilares centrais da legitimidade pelos Estados membros, pela sociedade civil e pelas vítimas de violações dos direitos humanos”, destacou a CIDH.
JAMIL CHADE “SITE DO UOL” ( GENEBRA / BRASIL)