No dia em que a contabilidade oficial reconhece o número de 100 000 mortos pela Covid-19, a única reação decente consiste em fazer um balanço honesto das causas que nos levaram a uma tragédia que jamais será esquecida.
Em nome da conhecida verdade de que os povos que não conhecem a História estão condenados a repetí-la, basta um mínimo de honestidade para reconhecer os fatos mais relevantes.
Uma tragédia dessa dimensão é incompatível com nossa condição sócio-econômica, de país que possui uma das dez maiores economias do planeta.
Os nossos 100 000 mortos tampouco se explicam por possíveis deficiências estruturais na saúde pública. Mesmo sabotado há mais de uma década pelos aliados do atual governo — a conta supera 20 bilhões de reais anuais– o SUS permanece como um dos um sistemas de saúde mais avançados do hemisfério e do planeta.
Ao lado dos limites e deficiências que atravessam a história social, política e econômica do país, é preciso recordar que os 100 000 mortos marcam um ponto fora da curva também na América do Sul.
Segundo país da região, a Argentina se aproxima dos 4 000 mortos. Com uma população cinco vezes maior, se tivesse um desempenho comparável ao de um vizinho que há anos enfrenta uma realidade econômica e social muito mais difícil, o Brasil estaria chorando 20 000 óbitos.
Não há dúvida de que a tragédia dos 100 000 tem uma origem política e seu nome é Jair Messias Bolsonaro. Herdeiro confesso da pior herança da ditadura militar, aquela que há meio século protegeu a tortura e institucionalizou a censura, Bolsonaro trouxe para o Brasil de 2020 o mesmo espírito mórbido de Médici, Ustra, Curió e demais integrantes de um governo que através da violência tentava esconder sua indiferença diante do sofrimento do povo.
Cinco décadas depois, o comportamento de Bolsonaro acabou batizado como “negacionismo” palavra que não passa de um eufemismo para esconder uma postura sua própria irresponsabilidade, cujo custo é medido, dia após dia, em mortes humanas.
Origem política de um massacre acompanhado ao vivo e a cores pelo país, esse comportamento não passa de uma tentativa ressuscitar a censura que corria solta sob a ditadura.
No esforço para “negar” uma epidemia de meningite que que atingiu o Sul e o Sudeste do país nos anos 1970, os generais tratavam um drama de saúde pública sob o mesmo manto de mentiras e segredos que escondia torturas e execuções, o arrocho salarial, as negociatas entre empresários e o governo. O saldo foi real. Até hoje não há números confiáveis para dar uma dimensão real daquela epidemia.
Como é fácil aprender nos livros de História, de “negação” em “negação” governos desprovidos de escrúpulos de qualquer natureza tentam confundir e desorientar adversários, utilizando a desinformação como instrumento de poder.
Quando os dados da pandemia da Covid-19 assumiram a dimensão de escândalo, desvendando a natureza apenas obscena do conceito “gripezinha”, evocando diretamente as responsabilidades presidenciais, a permanente dança de cadeiras no Ministério da Saúde foi embalada por uma tentativa desavergonhada de manipular estatísticas oficiais. Ocorreu então um episódio notável.
Ao perceber que seriam atingidos na mercadoria essencial de sua atividade — controle da verdade factual — os principais grupos de comunicação reagiram de modo exemplar. Em vez de comer na mão do bolsonarismo, uniram-se para apurar e divulgar diretamente os números e os nomes. Graças a eles, sabemos que foram 100 000. Sabemos os nomes, as histórias, as circunstâncias. Podemos chorar por eles. Chorar por todos nós, na verdade.
Num país que enfrenta uma tragédia sem limites, que não é produto de guerra externa ou catástrofe natural, os 100 000 mortos são a prova definitiva da incompatibilidade de Bolsonaro com nossas necessidades.
Marcam uma linha divisória na história de governo, na consciência da nação, que nunca será apagada. Todos irão lembrar das risadinhas desafiadoras, dos vídeos publicitários, da irreverência que traduz falta de respeito, dos lugares comuns que procuram estimular ignorância e conformismo. A morte. A morte. A morte.
Na mais importante batalha pela vida de nossa história, Bolsonaro e seu governo conduziram o Brasil para a derrota, confirmando aquilo que tantos sempre souberam: nada mais tinham a oferecer ao país além de dor, sofrimento e 100 000 mortes. Até agora.
Alguma dúvida?
PAULO MOREIRA LEITE ” BRASIL 247″ ( BRASIL)