É uma tremenda injustiça identificar-se o compositor, cantor, ator, diretor e pintor Sérgio Ricardo como o “cara que quebrou o violão”. Naqueles festivais dos anos 60, não foi diferente para nenhum dos hoje “monstros sagrados” da música, vaiados como ele: Chico Buarque, tímido, ouviu quieto Sabiá, dele e de Tom Jobim, ser estrepitosamente apupada; Caetano Veloso bateu boca com a plateia que urrava contra o seu É proibido proibir.
Sérgio só puxou a fila com seu Beto Bom de Bola, uma alegoria inspirada no drama de Mané Garrincha – “Contusão, esquecimento/Glória não perdura/Mas,/Se por um lado o bem se acaba/O mal também tem cura.
Guardo várias recordações de Sérgio Ricardo, a primeira delas a da sua Noite do Espantalho, um rebrote do Deus e o Diabo na Terra do Sol, em que ele e Glauber Rocha, além do filme histórico, nos trouxeram de volta de Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha, no sertão que vira mar e o mar que vira sertão e o brado de Corisco, que não se entrega, não, “que não é passarinho pra viver lá na prisão”. Na “Noite”, Ricardo entregou ao Brasil o jovem Alceu Valença, que dominava a cena com seus longos cabelos e sua voz inconfundível.
Depois, em 77, na faculdade, ele topou vir fazer um show com que íamos reabrir o pequeno Teatro de Arena da Faculdade de Economia. Íamos, mas a polícia (a da universidade mesmo, vejam só) proibiu. E lá foi Sérgio cantar numa cadeira posta sobre o balcão do “Moscão”, um decadente bar dentro do campus da Praia Vermelha, descumprindo o conselho que dava em Calabouço, que reproduzo ao final e que nós, jovens, enchíamos os pulmões para emendar da censura o verso para “olha um brasileiro de alma vazia”.
Um de meus colegas daquele tempo, para sempre um amigo, lembra que Sérgio batia uma moeda numa caneca ou copo, para lembrar da pobreza do povo brasileiro.
A última vez que estive com ele foi pouco tempo depois. É que Sérgio tinha uma casa no Morro do Vidigal ( foi lá que uma colega o havia convidado para nosso show mambembe) e, quando João Paulo II veio ao Brasil em 1980, muitos jornalistas fomos nos esconder por lá, na esperança de driblar o esquema de segurança da Polícia Federal e cobrir de perto a passagem do Papa pela favela. Claro que não funcionou e o último a ser descoberto e conduzido morro abaixo, sob os aplausos dos colegas, foi o querido Alberto Jacob, de O Globo, mestre de muitos focas como eu.
Se não valeu para driblar os meganhas, serviu para uma noite de música e alegria com Sérgio e seu vozeirão e para perceber a amizade de irmão que tinha com os moradores, que tinha defendido de uma tentativa de remoção em 1977.
Desta harmonia nasceu seu último filme, Bandeira dos Retalhos, contando a história de um povo que ele nunca largou, com o violão que ele nunca quebrou e a coragem que ele nunca perdeu.
FERNANDO BRITO ” BLOG TIJOLAÇO” ( BRASIL)