Se alguém se atrever a perguntar a um policial brasileiro sobre quem paga seu salário, ele dirá que é o tesoureiro. Não lhe passa pela cabeça que são os cidadãos, pagando seus impostos, que lhe pagam os salários.
Somos eu, você, todos nós, os que pagamos, com os nossos impostos, o salário de todos os funcionários públicos, entre eles os dos policiais. No caso dos policiais, o caso é particular. Porque eles agem como nós lhes delegássemos a responsabilidade de impor a ordem, que inclui a repressão a pobres, entre os quais, especialmente os negros.
Eles agem como nós lhes contratássemos para que se livrem dos pobres e negros, seja prendendo-os, seja matando-os, sempre golpeando-os, em nosso nome, para que possamos andar tranquilamente pelas ruas, com menos de sermos atacados por pobres e negros – via de regra, as mesmas pessoas.
O mais hediondo crime cometido diariamente no Brasil é o genocídio dos jovens negros. Que morrem às dezenas todos os dias, anonimamente, sem nome, sem rostos, sem famílias, sem mães, sem irmãos, sem namoradas. Só se sabe que eram negros. São acusados, depois de mortos, de terem “resistido à prisão” ou de terem “agredido os policiais”, de terem cometido atos de que nunca ninguém vai saber se era verdade. Servem para os policiais como pretexto para terem disparado, para terem assassinado jovens negros.
Agem com salários pagos por todos nós, inclusive pelas famílias das suas vítimas. Usam armamento, uniforme, carros, combustíveis, pagos com dinheiro público, para exercerem, da forma mais arbitrária possível, seu poder contra os negros e pobres, que frequentemente são as mesmas vítimas. Agem em nosso nome, para garantir a nossa ordem, com violência e brutalidade, sobre os que essa mesma ordem marginaliza, discrimina, exclui.
É um mecanismo cruel, brutal contra os negros, especialmente contra os jovens negros, dizimados, no maior genocídio da nossa sociedade. Nós os matamos através da polícia, que é o meio da nossa relação com eles. Assim os tratamos, assim os matamos.
Eu não quero mais pagar os policiais para tratar dessa maneira os jovens negros. Eu quero ter outro tipo de relação com eles.
Eu quero que nossa relação com eles não passe pela polícia, passe pela educação, pelo acesso deles às escolas e às faculdades. Que passe por conhecer a cultura deles, por ajudá-los a difundir suas músicas, sua literatura, seu teatro, suas rádios e suas tvs.
Eu não quero mais aparecer para eles como um branco que paga a polícia que os agride, que invade suas casas, que os considera como inimigos. Mas sei que hoje eu apareço assim para eles.
Mas para isso é preciso terminar com essa polícia. Nas basta, cada vez que policiais aparece publicamente maltratando a jovens negros, que um governante venha repetir a cantilena de que os policiais que se comportam assim são exceções, os flagrados são suspensos, tem processos que nunca desembocam em condenações. Os policiais que são filmados pisando no pescoço de mulheres e homens negros nem são expulsos imediatamente da PM. Da’ pra imaginar a quantidade de outras ações como essas, que não são filmadas, mas que representam o cotidiano das populações pobres.
Os policiais são formados na orientação da guerra ao crime, em que essas populações são consideradas inimigas, supostamente comprometidas com o tráfico e com outros crimes. Suas casas são invadidas, mães com filhos no colo tem armas apontadas contra eles, jovens são mortos em suas casas, enquanto brincam com seus amigos. Mães que ficam sem seus filhos, meninos que ficam sem seus amigos, famílias que vivem de luto pelas ações da polícia.
Não adianta os cursos nas escolas de polícia. Eu mesmo já participei de cursos de direitos humanos para policiais. Não acredito que adiantem nada. Se, depois da morte de Georges Floyd, difundida e repudiada mundialmente, é repetida aqui, por policial pisando no pescoço de uma mulher negra, mesmo se filmado, e sua ação é considerada uma forma normal de redução de pessoa, que não representa nenhum risco para policiais armados. Enquanto seus colegas ameaçam a população, com armas na mão.
Não quero pagar o salário desses policiais, não quero que eles me representem diante das populações pobres e negras, não quero que estes continuem a me considerar como quem financia a ação desses policiais criminosos.
Esses jovens são meus irmãos, meus amigos, quero que eles me considerem assim. Quero conviver com eles, pacificamente, não quero mais que esse genocídio seja a maior vergonha que o Brasil vive diariamente, em silencio, como se fosse normal, como se os policiais nos representassem, como se estivéssemos do lado dos policiais e não das suas vítimas.
EMIR SADER ” BLOG 247″ ( BRASIL)
Colunista do 247, Emir Sader é um dos principais sociólogos e cientistas políticos brasileiros