Começamos nossa investigação na segunda-feira, dia 18, pelo Complexo da Penha, na face norte da Serra da Misericórdia. Por ali, em fins de novembro de 2010, no final do segundo governo Lula começou o que seria a primeira grande guerra de combate ao comércio de drogas e à violência na região, realizada em conjunto por forças do Exército, da Marinha e das polícias do Rio.
2) Este é um detalhe do mapa mais recente e mais detalhado que usamos na reportagem. Nele aparece o Loteamento, com todas as suas ruas nomeadas, inclusive a Guadalajara e a Tv (de travessa) Mexicale de cujo encontro sai o beco no qual ocorreram três das mortes da sexta, dia 15. A Praça do Conhecimento e as duas estações, do Itararé e das Palmeiras, estão improvisadas no mapa pelos repórteres. Na avenida Itaoca, uma seta indica o ponto onde foram colocados, pelos moradores, mais cinco mortos.
Na época, comentaristas menos avisados, num auge de entusiasmo, saudaram a operação como uma espécie de libertação do povo da área, comparando a derrota dos traficantes à dos nazistas, na libertação de Paris pelas forças aliadas, no final da II Guerra Mundial. Nossa narrativa da época começa na Vacaria, uma espécie de várzea entre o Parque Proletário da Penha e a Serra da Misericórdia. Conta o episódio da morte e do enterro de um menino, um “soldado do tráfico”, como se diz, que fugiu quando as Forças armadas invadiram o bairro, usou uma escada para escalar o muro que separa a rua de moradores da área de mato da Serra e foi alvejado pelas costas pelos seus perseguidores, da força conjunta invasora. As Forças Armadas decretaram o bloqueio da região, uma tia do menino implorou para que a deixassem entrar para pegar e enterrar o corpo e só obteve a autorização dois dias depois, quando porcos e urubus já o tinham mutilado.
Nesse nosso novo capítulo das guerras do Alemão, desde o primeiro dia da nossa investigação, a segunda-feira, 18,, começamos a perceber que a grande “limpeza” feita no final de 2011 para “libertar” seu povo do tráfico e da violência, não tinha funcionado. Muitas áreas ainda são controladas pelos traficantes. Barras de ferro estão enterradas nas ruas para impedir o tráfico em velocidade maior. Deve-se dirigir com o pisca-alerta ligado, como nos foi recomendado por moradores. Isso serve para avisar aos donos do pedaço, chamemos assim, de que estávamos em missão de paz. E nas várias conversas para esta reportagem, em três delas, meninos, em torno de 15 anos diríamos, portavam o que nos pareceram rifles de repetição. E pelo menos numa dessas ocasiões, percebemos o que pode ser um certo orgulho nesses meninos, de serem de onde são. Na Fazendinha, numa banca com quatro deles, onde fomos pedir informações e um mototaxista, o aparente líder do grupo nos interrompeu quando começávamos a fazer perguntas, dizendo: “Isso aqui é o Alemão, moço”. Como que sugerindo: “aqui é o nosso pedaço, não é lugar para ficar respondendo a perguntas de estranhos”. Chamou o motoboy que levou o repórter para a Praça do Conhecimento, como ele lhe havia pedido.
Na abertura do capítulo 1 de nossa história dissemos que o teleférico unia as estações no alto dos morros do Complexo do Alemão. Unia, porque não une mais: instaladas a partir de 2012, as cinco estações foram desativadas há quatro anos, porque suas receitas, com o movimento de turistas e moradores, segundo o governo do estado, não cobriam mais do que 10% de seus custos. Por sua vez, a Praça do Conhecimento, que fica como que no pé da Favela Nova Brasília e é onde começa este penúltimo capítulo de nossa história, é parte do projeto de recriação do Alemão após a prevista “limpeza” com o afastamento dos “bandidos” do final de 2011. O governo programou para a área oito Unidades de Polícia Pacificadora, nome escolhido para significar que se buscava um novo tempo. A polícia viria para pacificar, não no velho estilo de atirar primeiro e perguntar depois. Duas UPPs foram inauguradas no Alemão em medos de 2012. E ainda em dezembro de 2011 foi inaugurada a Praça do Conhecimento, com um cinema e uma grande construção que abrigaria equipamentos para aprendizado das técnicas da informática e atividades culturais patrocinadas pelo governo do Estado. O projeto das UPPs não funcionou. Muitas foram criadas e depois desativadas. A Praça do Conhecimento serve para vários outros fins comerciais, que não vamos detalhar. Como centro de renovação da cultura local para combater a cultura da violência e do comércio de drogas, está desativada, é nossa conclusão.
Nossa primeira ida à praça foi na terça, 19. Uma informação dos jornais do fim de semana anterior dizia que, para a incursão policial do dia quinze, cujos disparos começam a ser ouvidos por moradores a partir das seis da manhã, soldados teriam passado a noite na Unidade de Polícia Pacificadora das Palmeiras. É uma construção moderna, destacada, ao lado da imponente estação Palmeiras do projeto do Teleférico. Tentamos falar com o primeiro policial fardado que encontramos mas foi em vão. Queríamos saber os locais nos quais teriam acontecido os confrontos que o noticiário sugeria e ele, que evidentemente não queria nos dar informação alguma, disse que tínhamos perguntado uma coisa muito mais ampla, queríamos saber “o que tinha acontecido no Complexo do Alemão”. Houve um curtíssimo bate boca porque o repórter que fez a pergunta disse que tinha 55 anos de jornalismo e seria absurdo ter feito a pergunta que nos atribuiu. Mas logo fomos perguntar em outras freguesias, depois de saber, de um segundo policial que nos atendeu, que a UPP se transferiu para a estação do teleférico há algum tempo.
Das Palmeiras descemos para a Fazendinha ao norte da estação, em busca da Associação dos Moradores da Fazendinha, da Favela Alvorada e da Favela Nova Brasília. A associação fica ao lado do “Campo do Seu Zé”, uma área cercada para futebol. Não havia ninguém a aquela hora, nove da manhã na sede da associação. E, a poucos metros dali acabamos chegando à banca com os quatro meninos que batizamos, algumas linhas atrás, como representantes do “orgulho alemão”, e que nos levou ao mototaxista com o qual chegamos à praça do Conhecimento.
Na praça, numa banca, perguntamos a um casal de jovens mascates se a polícia tinha tido um grande confronto com bandidos ou se, de fato, como imaginávamos então, tinha saído com uma lista de endereços para uma operação do tipo “busca e destruição” na qual teriam ocorrido as treze mortes. O mais velho nos disse, apontando para uma parede de loja numa esquina. “Quer saber o que aconteceu no Alemão? Veja aquele bagulho laranja pregado ali”. Vimos. Estava escrito no “bagulho laranja”, um cartaz: “A guerra do governo não é contra o vírus. É contra o povo. Deixe aqui a sua indignação”.
Voltamos à Praça na quarta, dia 20, depois de estudar nossos mapas e de pesquisar na internet as publicações dos moradores sobre a incursão da polícia no dia 15. Os mapas são antigos e, no mais detalhado que parece ser o mais recente, aparecem a Favela Parque Alvorada, a Favela Nova Brasília e a rua Nova Brasília que dá na Praça, como descobrimos a pé, descendo por ela até a Avenida Itaoca, já citada, que fica na parte baixa do Alemão. Mas a rua Nova Brasília termina e a praça não consta.
Mas, nesse mapa está também, partindo da Itaoca, para o alto, um conjunto de ruas que depois viríamos a saber que se chama Loteamento e que terá um papel destacado na nossa versão da história sobre a operação do dia 15. Esse Loteamento sobe da avenida Itaoca, logo em seguida á rua Nova Brasília, vai para a parte alta Alemão, passa perto da Praça do Conhecimento e no mapa termina tendo do lado leste a Favela Nova Brasília, que desce do morro onde fica a estação Itararé e do lado oeste, depois de um vale, a Favela Parque Alvorada que desce do morro onde fica a estação Palmeiras. Ainda tínhamos na cabeça a ideia de que a operação da sexta teria sido do tipo “busca e destruição” para atacar traficantes em locais já investigados e conhecidos pela polícia. E vimos pelo estudo de nossos mapas já velhos, que não conhecíamos a praça direito. Fizemos um esboço dela no seu ponto final e voltamos para lá na quarta-feira, dia 20 para conhecer melhor o local.
Se não tinha havido um grande confronto, como era então a nossa hipótese, queríamos achar pelo menos algum ponto no qual tivesse ocorrido algum dos muitos confrontos menores. A Praça do Conhecimento, sabemos agora, é uma espécie de parada a partir da qual, para o alto, termina o planejamento urbano e começa a favela Nova Brasília, a partir dos anos 1960, logo após a inauguração de Brasília. Da praça saem, para o norte, as quatro vielas que formam a estrutura básica de arruamento da favela – Vista Alegre, Santa Catarina, Alto da Boa Vista e Santo Antônio, segundo informou um morador. Para subir pelas escadarias das vielas da Praça até a rua da estação Itararé que é o final de todas elas, são mais de quinhentos degraus, disse um morador antigo.
E logo a seguir, com um outro morador, quando perguntamos sobre locais do confronto da sexta dia 15, ele foi enfático. “Se o senhor quer saber de onde vieram os mortos, suba por aquela rua ali” e apontou para uma saída da praça, a oeste, para onde nos dirigimos imediatamente, animados.
A rua, viemos descobrir, depois, ao final de nossa reportagem, é a Guadalajara, a última do Loteameno, no lado leste. Na sua parte baixa, na esquina dela com a avenida Itaoca está o ponto no qual moradores, carregando em lençóis, depositaram, na tarde de sexta-feira, os corpos de cinco mortos, além dos cinco que a polícia diz ter “encontrado” feridos no seu comunicado divulgado após a operação.
Saindo da praça como indicado pelo morador se chega a uma farmácia. A moça que nos atende confirma que no alto da rua de fato houve um confronto. E subimos, a pé. A subida é relativamente íngreme. Tendo subido perto de 200 metros aproximadamente, vimos um menino que nos fez sinal para parar. Ao lado dele vimos outro menino com um fuzil de repetição, deduzimos. Apresentamos nossos documentos de jornalista, dissemos o que queríamos, eles consultaram alguém por telefone e nos disseram para voltar à praça onde seríamos atendidos por outra pessoa que se identificaria. Voltamos à praça demos uma volta, a certa altura vimos um rapaz que exibia uma arma como a dos meninos da subida, que nos pareceu um cartão de identidade, e fomos conversar com ele. Ele pegou as credenciais, fotografou. Falou com alguém que imaginamos ser um superior dele. E disse que alguém nos veria no dia seguinte, ao meio dia, nesse mesmo lugar onde ele tinha nos recebido.
Como combinado, no meio dia da quinta estávamos lá. Depois de espera de uma hora, a decepção: o rapaz que chegou e nos atendeu naquela “lojinha de negócios”, digamos assim, para simplificar, disse que não nos levaria ao local que pretendíamos. E que os “amigos” queriam esquecer o que tinha acontecido e não me ajudariam. Reclamar, com quem? Como se diz: com o bispo. Mas não foi o nosso caso.
Eles não contavam que nós teríamos a ajuda da internet e de outros meios para fazer o percurso que pretendíamos. É o que contaremos no último capítulo.
RAIMUNDO RODRIGUES PEREIRA E ROGÉRIO PACHECO JORDÃO”BLOG NOCAUTE” ( BRASIL)