Desde que Jair Bolsonaro deu início a seu esforço para viabilizar um autogolpe, viveu-se ontem o dia mais grave, mais sério, mais ameaçador. E não porque, pela undécima vez, alheio às mortes e ao desastre da pandemia, ele, de novo, caiu nos braços da galera. Mas porque, pelo segundo domingo consecutivo, resolveu sobrevoar de helicóptero os Três Poderes da República, desta feita num aparelho com camuflagem. E se falta gravidade ao que se leu até aqui, a coisa pode piorar bastante quando se vê, lá dentro, de óculos escuros, o general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa. O general não acompanhou o presidente na expedição a povo. Nem precisava.
Será que Azevedo e Silva não conhece a praça vista de acima? Saudade do tempo da Brigada de Infantaria Paraquedista? O mundo olha para o Brasil como nunca dantes na história. Não, ao menos, desde a redemocratização. Com quase três mil militares da ativa no governo, a administração se tornou uma espécie de repartição das Forças Armadas. Dizer o quê? A combinação general com óculos escuros é coisa que a história costuma mandar para a lata de lixo. Ou para os compêndios de agressão aos direitos humanos. A mais famosa é aquela em que Augusto Pinochet aparece com cara de Augusto Pinochet.
O ministro não é ingênuo e sabe que nós não somos. Estava passando um recado: “As Forças Armadas estão com Bolsonaro”, embora, na semana passada, quando Eduardo Bolsonaro anunciou a ruptura, tanto Augusto Heleno (GSI) como Hamilton Mourão (vice-presidente) tenham descartado o… golpe.
Parece que há gente tentando brincar com a quadratura do círculo, buscando encontrar um jeito de golpear de fato, sem golpear o direito; de instaurar um regime militar, sem que isso possa ser chamado pelo nome; de meter um canga nas instituições, mas ainda chamando o regime de democracia; de tirar o Poder dos Poderes, sem, no entanto, dar à coisa a feição de uma quartelada.
Como isso não existe, das duas uma: ou se dá o golpe mesmo ou se põe fim a essa coreografia ridícula, que desmoraliza as Forças Armadas como entes do Estado brasileiro. Nem Ives Gandra Martins conseguirá colocar seu talento retórico a serviço de uma instância intermediária, com sua leitura do Artigo 142 da Constituição com a qual só golpistas concordam. Acontece que alguém precisa lembrar a doutor Ives que quem usa tanque não precisa de argumentos.
É claro que Azevedo e Silva está se juntando ao presidente para assustar o país, no que, obviamente, faz muito mal. Não, eu não creio que o golpe seja possível — a menos que a insanidade já tenha se espalhado pelo alto comando das Três Forças. Ocorre, reitero, que esse não é o único mal que pode acontecer ao país.
No chão, Bolsonaro resolveu pegar um cavalo da Polícia Militar e desfilar, chegando até a galopar um pouquinho. Não chegava a ter o porte de baixinho parrudo e marrento de Mussolini, mas a imagem, claro!, remetia ao ditador. A última vez em que uma autoridade desfilou a cavalo em Brasília para ameaçar pessoas foi em 1984. O presidente Figueiredo decretou estado de emergência no Distrito Federal, em Goiânia e em outros nove municípios do entorno por ocasião da votação da emenda Dante de Oliveira, a das Diretas-Já. Segundo a desculpa oficial, foi para evitar que o Congresso fosse pressionado…
Em 1984, o objetivo era evitar pressão sobre o Congresso. Em 2020, estimula-se que fascistoides intimidem o Parlamento e o Supremo. O espetáculo daquele Napoleão de hospício tem 36 anos. Quase quatro décadas depois, cá estamos nós a debater a “questão militar”. É claro que isso quer dizer alguma coisa. E não é boa. Não por acaso, o mundo olha para o Brasil com espanto e, não vai demorar, com desprezo.
Figueiredo foi o último ditador do regime inaugurado em 1964. Do que, exatamente, alguns saudosistas andam a sentir falta?
Neste domingo, Mourão, o vice, escreveu um Twitter endereçado ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso:
“Quanto à afirmação: ‘os responsáveis pelos erros do Governo, queiram ou não, serão os militares’; convido o ex-presidente FHC a refletir sobre a História do Brasil e verificar se não são eles que, mais uma vez, servindo ao Estado, mantêm a estabilidade institucional do País”.
Mourão parece ter a ambição de ensinar história a FHC, que fizera aquela afirmação em entrevista ao jornal espanhol El País. Junto com a postagem, ia uma foto da Praça dos Três Poderes.
O processo de intimidação está em curso. Falta agora que os militares definam onde estão os inimigos da estabilidade. Tudo indica que são mesmo as instituições. O mais recente esforço em favor da moralidade nacional, aviltada pela Constituição — não é mesmo, valentes? —, é abrir as porteiras para o fundão do Centrão. Só ele pode trazer aquele sentido de honra, sem o qual não se pode falar em pátria, certo?
Não entendi que parte da fala de FHC deixou Mourão irritado? Alguma dúvida de que os militares terão em sua biografia o governo Bolsonaro?
Na noite anterior, a Praça dos Três Poderes havia assistido a uma manifestação escancaradamente fascistoide, com apelos à Ku Klux Klan. No domingo, o ministro da Defesa a sobrevoava como a dizer: “Está tudo dominado”.
Não está. Numa democracia, os militares são reverentes à Constituição; não é a Constituição que é reverente aos militares.
Ou erro em alguma coisa, generais?
Melhor vocês todos fariam, em benefício do ente ao qual pertencem, se resolvessem deixar o governo para quem tem a função de governar. E notem: poderia, ao menos, estar dando certo. Percebam, no entanto, o buraco que vocês estão ajudando a cavar. É claro que a história não lhe será leve.
REYNALDO AZEVEDO ” SITE DO UOL” ( BRASIL)