A crise sanitária expõe todos os dias dilema que aflora paixões. Cuidar primeiro da saúde, depois da economia? Ou vice-versa? Ou ambas? Para o autor, não há dúvida na resposta. Trata-se de decidir entre a vida ou a bolsa
Atender ao encargo de alimentar, vestir e, tanto quanto possível, satisfazer, por meio de produtos e serviços, as necessidades físicas e culturais de todos os estamentos sociais é o primeiro propósito da economia.São meios de garantir a vida da espécie humana.Publicidade
Se a vida humana corre risco, não de sua total extinção (pelo menos por ora: é preciso ficar de olho na escalada militar em face da pandemia), mas tão somente na proporção bastante para romper elos da cadeia de produção, circulação e venda de bens e serviços, o sistema no qual se assenta a manutenção e perpetuação da própria vida fica comprometido. Basta que um desses elos, qual seja, a prestação de serviços de saúde às populações em geral, se rompa para que tudo desmorone como um castelo de cartas.
Acresça-se que os entes que se devotam à iniciativa de atender ao encargo de garantir a vida humana, necessitam, constantemente, repor as matérias-primas, a energia, as máquinas, as ferramentas e os instrumentos de trabalho para continuarem a missão de prover meios de vida a seres humanos. Mas, novamente, se as imprescindíveis cadeias de suprimento ficam capengas porque a força de trabalho responsável por essa tarefa se torna manca, por afastamentos às mancheias, motivados por doença, ou por mortes, às dezenas, centenas, milhares, exponencialmente contadas, o círculo não se fecha. Não se assegura a continuação da sociedade, tal como organizada; compromete-se a existência de toda forma de produção. Estraçalha-se o desenvolvimento cultural; trava-se o progresso.
Isso sem falar na pergunta que não quer calar: seria possível a reprodução desse sistema sem que haja pessoas que comprem, ou, de outra forma, havendo pessoas vivas − portanto, compradores em potencial − não possam essas efetivamente comprar por não terem renda, dado o desarranjo global da ciranda econômica? A não ser que resolvamos comungar de esdrúxula teoria “econômica”, segundo a qual a produção capitalista é independente do consumo humano (o economista russo Tugan Baranowski defendeu isso no início do século XX), a resposta, obviamente, há de ser negativa.
Sabemos todos que a crise, do ponto de vista econômico, é grave. Gravíssima. Talvez a maior que o mundo já tenha vivido desde a Primeira Guerra Mundial, o primeiro conflito global. E a origem dela não é o isolamento social, mas a pandemia da Covid-19 − para a qual não há vacina ou remédio −, que está levando as estruturas de saúde ao colapso.
Não podemos nos esquecer, ademais, que pouco antes da declaração do estado de pandemia pela Organização Mundial da Saúde – OMS, assistimos ao desmoronamento dos preços do petróleo. Um bom indicador do tamanho do rombo provocado pelo coronavírus, em escala mundial, é dado pelo setor de transportes aéreos: apesar do tombo nos preços dos combustíveis de aviação, derivados do petróleo, as empresas aéreas de todo o mundo praticamente foram à bancarrota.
Curiosamente, a Primeira Guerra Mundial, que acima tomamos como marco temporal para aferição comparativa de crises econômicas, foi seguida de uma pandemia que, por razões geopolíticas, acabou rotulada como “Gripe Espanhola”, mas, hoje se sabe, teve como foco de propagação do vírus que lhe deu causa o Estado do Kansas, nos EUA. E dessa tragédia veio a lição para o dilema: a bolsa ou a vida? Consoante conclusões de estudos
já conhecidos, os países que praticaram o isolamento social rigoroso àquela época foram os primeiros que viram suas economias se recuperarem.
Como dissemos no início, a bolsa existe em função da vida. Não pode ser o contrário. Sim, a vida não pode prescindir dos meios econômicos, mas não pode ser subjugada à economia. Por certo, soergueremo-nos dos escombros de uma economia devastada. Em que bases e como o faremos são questões que ficam para depois.
Precisamos dos meios de vida para prosseguir em nossa jornada como Homo sapiens, mas para empreendermos essa árdua tarefa de reconstrução, necessitamos, primeiramente, estar vivos e vivendo em sociedade. Quem quer a economia funcionando, antes de assegurar a manutenção da vida de centenas de milhares ou milhões, não quer a vida para todos e em abundância, isto é, em bem-estar para todos. A quer, meramente, como peça de reposição na engrenagem econômica, contando com a abundância de mão de obra descartável.
Enfim: a bolsa ou a vida? Primeiro, a vida: “You can’t thrive if you are not alive” (Você não pode prosperar se não estiver vivo). Não dá para colocar o carro na frente dos bois.
THALES COELHO ” BLOG OS DIVERGENTES” ( BRASIL)
* Thales Chagas Machado Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG.