No já tristemente famoso discurso em jantar na Embaixada do Brasil em Washington, em 17 de março de 2019, Bolsonaro afirmou: “o Brasil não é terreno aberto, onde nós pretendemos construir coisas para nosso povo”. E explicou: “nós temos que desconstruir muita coisa para depois recomeçarmos a fazer”. Não resta dúvidas que a ocasião era especial, já que o presidente, na sua primeira visita aos EUA, encontrava expoentes da extrema-direita, como o “estrategista” Steve Bannon, o “investidor” Gerald Brant e o “guru” Olavo de Carvalho.
Os propósitos destrutivos de Bolsonaro contrastam com boa parte da reflexão mais importante sobre o Brasil. Como notou Paulo Arantes (1992), curiosamente parcela significativa dos trabalhos mais relevantes sobre o país ostenta a palavra “formação” no título. Fazem parte desse “quase gênero”, livros como Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr., Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado, e Formação da literatura brasileira (1959), de Antonio Candido [1].
O “ar de família” dessa bibliografia não é mero acaso, já que o militante comunista, o economista e o crítico literário refletiam a partir de um país que foi colônia e aspirava se tornar nação. Em outras palavras, desejava superar a subordinação para passar a ser mais autônomo.
Por outro lado, como notou Roberto Schwarz (1999), essa aspiração se manifesta de forma diferente em variadas dimensões. Uma coisa é falar em formação da literatura, processo pelo qual, como mostra Candido, por volta do final do século XIX, se constituiu um “sistema literário”, composto por produtores (escritores), público (leitores) e uma linguagem que possibilita a comunicação entre eles. Outra coisa é tratar da formação econômica.
Furtado, não por acaso, discutiu em um dos seus últimos trabalhos a “construção interrompida”. Ele percebeu, no final do século XX, que a “emergência de um sistema cujo principal centro dinâmico é o mercado interno” já se tornara uma meta distante. Já Prado Jr., mostrou que a colônia de exploração, “simples negócio”, traria a potencialidade de se transformar numa sociedade original, o que contrasta com as colônias de povoamento da Inglaterra na América do Norte, que não passariam de um prolongamento da Europa.
No que pese as diferenças de elaborações, são notáveis as coincidências na “obsessão com a formação”, presente em áreas que nos acostumamos a pensar como praticamente incomunicáveis, como a literatura e a economia. Não menos significativo é como o mesmo raciocínio pode ser usado para pensar outras experiências brasileiras.
Talvez a referência à “formação” funcione especialmente bem para lidar com o que se convencionou chamar de música popular brasileira (MPB), como já apontou Caetano Veloso há mais de cinquenta anos. João Gilberto, assim como Machado de Assis, foi capaz de absorver o melhor de uma tradição e transformá-la. No caso, sua inovação – a peculiar batida de violão – partiu do samba, símbolo da identidade brasileira desde a década de 1930, para modificá-lo, por influências do “samba canção” ou do jazz norte-americano [2].
Não deixa de ser reveladora a reação de Jair Bolsonaro à morte de João Gilberto. Instigado a comentá-la, simplesmente respondeu: “(era) uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá o.k.?”. Ou seja, a manifestação do presidente deixa claro que lhe indiferente a morte de um dos maiores músicos brasileiros. O chefe da nação pode, no máximo, oferecer condolências protocolares à família.
É possível argumentar que não se poderia esperar outra coisa de Bolsonaro. Afinal, como deixou claro no jantar na embaixada brasileira em Washington, ele foi eleito para “desconstruir muita coisa”. E o Brasil de João Gilberto certamente não é o Brasil de Bolsonaro. É justamente o “terreno” que o músico ajudou a construir que o presidente pretende destruir. Coincidência ou não, o primeiro álbum do baiano de Juazeiro, “Chega de Saudades”, apareceu em 1959, mesmo ano da publicação de Formação da literatura brasileira e Formação econômica do Brasil.
A burguesia brasileira ajudou a eleger Bolsonaro com a intenção explícita de pôr abaixo o que resta do Estado desenvolvimentista que Furtado ajudou a criar. Há cerca de quarenta anos escutamos a ladainha de que ele é ineficiente e deve ceder lugar ao mercado, onde seus agentes, ao perseguirem benefícios próprios, trariam riqueza para o conjunto da sociedade.
Outros votaram em Bolsonaro em reação contra o “marxismo cultural”, espantalho que acaba equivalendo a qualquer forma de pensamento crítico ou manifestação artística inconformista, tais como as criações de Candido, João Gilberto e o melhor da cultura brasileira.
Não há novidade em dizer que o projeto de Bolsonaro é destrutivo. O próprio, assim como os intelectuais a seu serviço, nunca esconderam isso.
Também pode-se dizer que a referência à “formação” já não faz mais sentido, como se tem insistido desde pelo menos os anos 1990. Momento em que a “globalização” avançava, impossibilitando projetos autárquicos. Além de tudo, desde então, ficou mais claro que os países que nos serviam de modelo já não eram tão bem integrados como imaginávamos. Significativamente, começou-se a falar então de “brasilianização” do mundo.
No entanto, desde a crise do coronavírus, a destruição promovida por Bolsonaro e seu governo ganhou uma urgência e literalidade que não se podia imaginar dois meses atrás. Ironicamente, um dos poucos instrumentos com que o Brasil conta para combater a pandemia é um produto tardio do ímpeto de construção anterior: o Sistema Único de Saúde (SUS), criado na Constituição de 1988, como resultado de uma “coalizão” de médicos sanitaristas.
Em contraste, a atual equipe econômica neoliberal pretende aproveitar a oportunidade oferecida pela crise para “flexibilizar” o que ainda ficou da legislação trabalhista com o pretexto de estimular o emprego. Isso para não falar das mortes causadas pela sabotagem por parte do presidente e de seus auxiliares do imprescindível isolamento social, justificado, quando tanto, por um raciocínio próximo ao darwinismo social.
É preciso, portanto, deter Bolsonaro. O custo, se não agirmos logo, pode ser alto demais: simplesmente não termos mais terreno algum sobre o qual construir.
BERNARDO RICUPERO ” SITE A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)
*Bernardo Ricúpero é professor de ciência política na USP. Autor, entre outros livros, de Sete lições sobre a interpretação do Brasil (Alameda).
Notas
[1] Sobre a literatura a respeito da formação, cf. Rafael Marino, As figurações da formação no pensamento brasileiro.
[2] Ver GARCIA, Walter. Bim bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto.
Referências
ARANTES, Paulo. Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo”. D´INCAO, Maria Angela e SCARABANTOLO, Eloísa F. Dentro do texto, dentro da vida: ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
GARCIA, Walter. Bim bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
MARINO, Rafael. As figurações da formação no pensamento brasileiro. Curitiba: Appris, (no prelo).
SCHWARZ, Roberto. “Os sete fôlegos de um livro” in Sequencias brasileiras, São Paulo, Companhia das Letras, 1999.