Na trajetória normal dos acontecimentos, jornalismo é o rascunho da história.
Em uma pandemia, no entanto, jornalismo é o rascunho do futuro.
Nós estamos todos sozinhos em casa. Também estamos em algum lugar da encosta matemática da curva epidêmica do coronavírus, olhando para cima, imaginando onde estará o pico.
Enquanto escrevia este texto, em 17 de março, havia mais de 4.200 casos confirmados de covid-19 nos Estados Unidos (a partir da publicação em 18 de março, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças havia atualizado esse número para 7.038). Os baixos números pareciam uma ninharia à época, dado que 1) quase todos os grandes eventos nos EUA foram cancelados; 2) o mercado de ações tem sofrido as piores perdas em décadas: 3) o presidente Donald Trump buscou US$ 850 bilhões em estímulo; 3) a cidade de São Francisco, no Estado da Califórnia, e outras comunidades estavam em quarentena.
Mas entendemos essas reações extremas porque compreendemos vagamente como o presente pode influenciar o futuro. Ou como 5.000 casos de covid-19 podem se tornar 500 mil e, então, 50 milhões. O trabalho do jornalista é justamente esse: reforçar o entendimento acerca do futuro próximo.
“No início e ao fim de uma pandemia, sempre há uma propensão para a retórica. No 1º ponto, os hábitos ainda não foram perdidos; no 2º, eles estão retornando”, escreve Albert Camus no livro “A Praga”. “É no meio da calamidade que se endurece para a verdade, em outras palavras, para o silêncio.”
Estamos no meio de uma calamidade. Mas nós, jornalistas, não temos o privilégio de permanecer em silêncio. Devemos nos arriscar a prever, por meio dos melhores dados científicos e epidemiológicos disponíveis.
A prospecção científica é como a população terá uma ideia de como o presente pode influir no futuro. E esse tipo de previsão é incorporado ao estudo das doenças infecciosas. Em tempos normais, o jornalista pode ser relutante em prever; recusar-se a adotar o papel de adivinho sobre o ofício de ser repórter. No entanto, numa pandemia, é necessário estar 1 passo à frente do que está por vir. Previsão informada vai ao centro da questão: que o presente vai se tornar o futuro, e que o futuro vai ser, de fato, bem diferente.
“Ao lidar com 1 surto de doenças infecciosas desconhecidas, você está sempre 1 passo atrasado se achar que o cenário de hoje indica onde você está”, disse Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, e membro da força-tarefa de combate ao novo coronavírus da Casa Branca.
A previsão tem sido o objetivo do jornalismo empírico há décadas, pelo menos desde que o Univac, 1 dos primeiros computadores, passou a dividir os estúdios da emissora de TV CBS News com o apresentador Walter Cronkite para ajudá-lo a prever os resultados das eleições presidenciais de 1952. (O computador apontava acertadamente para a vitória de Eisenhower em vez de Stevenson desde o início.)
Essas previsões cresceram num pequeno punhado de publicações contemporâneas, com destaque para o FiveThirtyEight, onde eu fui redator de 2014 a 2019. Por meio de uma variedade de modelos estatísticos, o site foi se dedicou a prever milhares de corridas eleitorais e competições esportivas. E suas previsões, pelo menos em termos de valor preditivo, são positivas. (O FiveThirtyEight até agora evitou fazer muitas previsões sobre o novo coronavírus, embora tenha lançado uma luz sobre o impacto econômico da pandemia nos esportes.)
Mas previsões não são feitas em 1 vácuo.
Um artigo recente do Journal of Politics descobriu que previsões eleitorais podem confundir e desmobilizar os eleitores, dando-lhes a sensação de que as corridas são menos competitivas do que realmente são. Essas são críticas que o FiveThirtyEight e outros veículos enfrentaram bem antes de se tornarem objeto de estudo acadêmico. Se as corridas eleitorais são vistas como menos competitivas, os futuros eleitores podem perder o interesse em votar.
“Não podemos dizer com certeza. Mas, considerando o estado das eleições [presidenciais de 2016] em alguns estados, é perfeitamente possível que as previsões tenham mudado as eleições em favor de Trump”, disse 1 dos autores à revista digital Slate. Em Michigan, por exemplo, Hillary Clinton era a favorita de 79%, segundo o FiveThirtyEight; ela eventualmente perdeu no Estado por 0,3 pontos percentuais.
Previsões têm consequências. Elas podem alterar o comportamento dos participantes no próprio evento pesquisado, e por consequência o resultado desse evento, e por consequência o bem-estar dos participantes. É o princípio da incerteza de Heisenberg: é quase impossível prever 1 evento algo sem afetá-lo.
Talvez isso possa ser bom. As previsões sobre a gravidade de uma pandemia certamente afetam o comportamento da população. E os jornalistas deveriam internalizar esse fato em vez de evitá-lo.
“O vírus sempre o pegará se você não se move rapidamente”, disse Michael Ryan, 1 diretor executivo da OMS (Organização Mundial da Saúde), em debate sobre as lições aprendidas com o surto do Ebola nos últimos anos. “Se você precisar ter certeza absoluta sobre algo antes de começar a agir, nunca vencerá. A velocidade supera a perfeição. O problema que temos na sociedade no momento é que todo mundo tem medo de cometer algum erro. Todo mundo tem medo da consequência do erro. Mas o maior erro é ficar parado.”Os jornalistas, mais do que muitos, têm medo da consequência do erro. Foi só no início da semana passada, ao telefone com uma amiga, que comecei a fazer algumas contas. De acordo com 1 epidemiologista de Harvard, 40% a 70% dos norte-americanos deve contrair o novo coronavírus. Outros especialistas disseram que a taxa de mortalidade era de cerca de 1%. Isso implicava que mais de 1,5 milhão de norte-americanos morreriam de covid-19. Eu não tinha ouvido nada parecido com isso ser discutido em lugar nenhum, e eu estava consumindo notícias obsessivamente. Isso não podia estar certo –mas estava.
Foi só então, naquele momento, que mudei drasticamente minha própria visão, de relaxada para vigilante. E meu próprio comportamento. Daí para diante, mal saí em público, adotando completamente os princípios do distanciamento social.
Eventualmente, o New York Times informou, com base nos cenários dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças, que de 200 mil a 1,7 milhão de pessoas nos EUA poderiam morrer. Dias depois, o mesmo jornal reportou, com base no trabalho de 1 grupo de modelagem de epidemias no Imperial College de Londres, que 2,2 milhões de pessoas nos EUA poderiam morrer. Dados acerca de leitos hospitalares, levantados pela ProPublica, com base em dados do Instituto Global de Saúde de Harvard, foram igualmente assustadores.
Enfim!
Tais previsões certamente não são perfeitas, mas orientam o entendimento do leitor sobre o que poderia estar por vir: elas fornecem mapas amplos para traduzir o presente no futuro. O crescimento exponencial –que pode subir de 5.000 para 500 mil para 50 milhões– é 1 conceito muitas vezes incompreendido. Por sua vez, previsões sobre os piores cenários possível costumam ser “incorretas”, pois são precisamente o que queremos evitar. Quero dizer: pode ser que eu nunca venha a sofrer 1 ataque cardíaco. Mesmo assim, devo entender o que acontece –e o quanto custa– caso eu venha a ter 1. Assim, talvez eu me previna melhor.
Ao olhar para o futuro, os jornalistas devem abraçar o efeito de observador. Não devemos ter vergonha de apresentar os piores cenários, com base no pensamento científico mais sólido disponível, mas também devemos expandir tais cenários com alternativas. O relatório do Imperial College de Londres, por exemplo, apresenta seus resultados com uma variedade de cenários possíveis. As prospecções preveem o que pode ocorrer caso “não se faça nada”, e também quais são as tendencias se seguirmos diferentes medidas de distanciamento social.
É de se perguntar aqui quais poderiam ter sido os resultados das eleições presidenciais de 2016, se o FiveThirtyEight apresentasse uma variedade de cenários sobre as respostas de votação de seus leitores à sua declaração de que Hillary Clinton era uma das favoritas na noite das eleições.
De certa forma, a pandemia provou o poder absoluto do jornalismo visual e empírico. O diagrama “achatar a curva“, popularizado pelo The Economist, tornou-se 1 grito de guerra internacional, uma potente abreviação visual da importância das quarentenas. E o simulador de infecção do Washington Post ilustra o mecanismo subjacente a uma curva achatada. O Financial Times, por sua vez, tem representado graficamente o vírus espalhado por país, destacando a eficácia de várias políticas precoces e severas em lugares como Cingapura e Hong Kong.
Outras publicações já adotaram esse espírito de mudança de maneira mais qualitativa. O site The Atlantic, por exemplo, publicou artigo intitulado “Cancele tudo”. E quase tudo foi cancelado.
É fácil dizer que a previsão é uma brincadeira de tolos; e, costumeiramente, é mesmo. Mas as pandemias são sui generis nos assuntos humanos. Uma força invisível que interfere no mundo, muitas vezes assintomática, impulsionada unicamente pela matemática epidemiológica e por nosso comportamento coletivo. À medida que os jornalistas possam decodificar a matemática ou dar um empurrãozinho nos fatores comportamentais, eles devem fazê-lo.
OLIVER ROEDER ” NIEMAN REPORTS” ( EUA) / “BLOG PODER 360” ( BRASIL)
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* Oliver Roeder, bolsista do Nieman em 2020, é jornalista na cidade de Nova York. Anteriormente, ele era redator sênior da FiveThirtyEight. Roeder é Ph.D. em economia, com foco na teoria dos jogos, e seus trabalhos foram publicados em The Economist, Slate, Nautilus e Aeon.
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