Um se apresenta como o garantidor do “the rule of law”. Outro, como o aríete do antiestablishment. Um é o justiceiro das araucárias. Outro, protodéspota nada esclarecido. Quem são eles?
Bem que tentaram. Ambos procuraram se esmerar na pronúncia em inglês, mas não deu certo. Menos, talvez, pela falta de familiaridade com anglicismos do que pela falta de sinceridade na interpretação dos papeis que julgavam desempenhar.Publicidade
Aquele que fizera as vezes de justiceiro das araucárias proclamou sua fidelidade ao “the rule of law”, ou, em livre tradução para o vernáculo, ao “império da lei”; já o protodéspota nada esclarecido da Barra da Tijuca arvorou-se em agente político “antiestablishment”, ou, numa linguagem popular, “contra tudo isso que está aí”.
Nada mais falso.
O outrora magistrado notoriamente faltou com a imparcialidade no exercício da função jurisdicional, quando esteve à frente de vara criminal da Justiça Federal, na Seção Judiciária do Estado do Paraná. E a neutralidade de um juiz é a pedra angular do “the rule of law”. Decepcionou até mesmo a jurista Susan-Rose Ackerman, da Universidade de Yale (EUA), considerada a “maior especialista mundial em corrupção”, pelo menos nas palavras de Deltan Dallagnol.
A sua versão de “the rule of law” comportava concessões ao velho adágio, segundo o qual “os fins justificam os meios”. No governo, teria faltado com o respeito à vida e à dignidade da pessoa humana: ao patrocinar a licença para matar; ao fomentar o punitivismo, deixando que penitenciárias seguissem o destino manifesto de masmorras e abatedouros; ao fingir que as ameaças de genocídio aos povos indígenas não lhe diziam respeito; ao fazer vistas grossas à ação de milícias. As agressões ao direito difuso – isto é, de todos nós – a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem “essencial à sadia qualidade de vida”, como diz a Constituição, foram desdenhadas pela polícia judiciária abrigada no guarda-chuva de seu ministério. Aquela mesma que, agora, refeitos da amnésia, recordamos ser “órgão de Estado”.
Já o capitão reformado, que encontrou nas instituições parlamentares da tradicional democracia representativa a casamata para reverberar vitupérios − após ter sido instado a deixar as fileiras do Exército − foi sendo talhado para defender interesses do “establishment”. A crise política, no bojo dessa pandemia, se apresenta no exato momento em que Sua Excelência se empenha em construir uma maioria parlamentar, que reuniria em torno de si o rebotalho de sempre na política brasileira.
Agregar-se-iam ao seu governo, à base do “é dando que se recebe”, nas palavras do falecido deputado Roberto Cardoso Alves, personagens que são figurinhas carimbadas em prontuários policiais. São atores da “velha política”, que condicionaram a adesão ao governo do condottiero à rolagem da cabeça do próprio justiceiro das araucárias. Ademais, como poderia alguém ser “antiestablishment”, se busca garrotear a polícia judiciária, “órgão de Estado”, de acordo com a Constituição (como há pouco recordamos), cuja função seria dar suporte aos magistrados, no desempenho da jurisdição, e não ser instrumento de bisbilhotice de um chefe de governo?
Ambos, no entanto, têm algo em comum: a seus respectivos modos, atuam no sentido de implementar interesses dessa entidade abstrata rotulada como “mercado”, isto é, os que vivem da renda propiciada pela reprodução do capital. Os dois se colocam como pretendentes ao posto de preposto-mor, a gerir negócios, na periferia do capitalismo, de uns poucos a quem a fortuna proporcionou a felicidade que sequer precisa ser buscada, como imaginava Thomas Jefferson . Visam ambos à desconstrução do estado de bem-estar social que se tentou, precariamente, erigir por meio da Constituição de 88, e à sua substituição pelo “Estado-gendarme”, o guarda sempre vigilante na defesa da propriedade privada e da execução dos contratos, pelos quais se viabiliza a circulação de mercadorias.
Alimentam-se, ambos, na disputa, de sentimentos de impotência e desesperança de significativos segmentos sociais, os quais, sem nenhuma formação ou informação, correm atrás de profetas; acreditam em super-heróis, mitos, um ou outro messias, salvadores da pátria ou demiurgos como os únicos capazes de evitar o encalacro da déblâcle econômica e social em que estamos metidos. Em seus altares a liberdade e a autonomia são depositadas, na esperança, em troca, de algum milagre para os desassossegos da vida.
As audiências digitalmente robustecidas fortaleceram-lhes a vaidade. Imaginando-se então profetas de uma tal de civilização judaico-cristã, deveriam, pois, ler a passagem do Eclesiastes, segundo a qual “tudo é vaidade; não há nada de novo sob o sol”. Segue-se-lhe o seguinte trecho do mesmo livro a merecer, também, a reflexão dos profetas: “A injustiça ocupa o lugar do direito, e a iniquidade ocupa o lugar da justiça” (Ecl. 3-16).
O curioso é que ambos não profetizam o futuro; incensam o conservadorismo. Haveria diferenças entre eles? Parafraseando Isaac Deutscher, percebo que o justiceiro tornou-se um “profeta desarmado” e o protodéspota nada esclarecido busca, agora, facilitar a distribuição de munição não rastreável para o seu séquito de fanáticos e provocadores.
Que o digam os jornalistas recentemente agredidos frente ao Palácio do Planalto, que, por certo, melhor entenderiam o que diz ainda o Eclesiastes: “Eis aqui as lágrimas dos oprimidos e não há ninguém para consolá-los. Seus opressores fazem-lhes violência e não há ninguém para consolá-los” (Ecl. 4-1).
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