“Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca!”
Apoplético, Bolsonaro já desceu do carro aos berros nesta terça-feira, chacoalhando um exemplar da Folha nas mãos, e partiu para cima dos jornalistas no “cercadinho” do Alvorada, o seu palanque permanente para falar aos devotos da seita e atacar a imprensa.
Num ataque de fúria, xingou várias vezes o jornal, sob os aplausos e urros da claque de seguidores que gritavam “Mito!”. Mais não disse nem lhe foi perguntado. Virou as costas, e saiu marchando de volta para o carro.
Assim começou mais um dia em Brasília, o epicentro da pandemia de bolsovírus, que virou o Brasil de pernas para o ar numa crise institucional sem fim.
Como foi possível? Como chegamos a esse beco sem saída? Como permitimos que um demente assumisse o comando do país para destruí-lo?
Mais assustador de tudo, é pensar que cerca de um terço do eleitorado, segundo todas as pesquisas, ainda apoia esse governo.
Bolsonaro e a pandemia um dia passarão, mas vamos ter que conviver daqui para a frente com um Brasil que não conhecíamos até a eleição de 2018.
As perguntas que agora os outros dois terços da nação estão se fazendo são respondidas num primoroso artigo de Ivan Lago, professor e doutor em Sociologia Política, que recebi esta semana, enviado pela minha cunhada Sandra Othon, a quem agradeço.
“O Jair que há em nós” é o título do artigo em que esse estudioso da alma brasileira explica de onde vem o fanatismo de uma parcela expressiva da sociedade pelo ex-capitão afastado e aposentado pelo Exército, aos 33 anos, que veio combater a “velha política” para refundar o país à sua imagem e semelhança.
Ainda não tinha lido nada tão profundo e bem argumentado para buscar as origens do bolsonarismo em marcha e explicar a sua resiliência, apesar de todas as barbaridades já praticadas contra a democracia.
“Bolsonaro, na verdade, representa não sua negação (da velha política). Ele é a materialização do que há de mais nefasto, mais autoritário, mais inescrupuloso do sistema político brasileiro. Mas ele está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as eleições”.
Ivan Lago vê em Bolsonaro, “uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política, que caracteriza o típico cidadão do nosso país”.
O retrato que ele encontrou em suas pesquisas não é nada bonito.
“Quando me refiro ao brasileiro médio, obviamente não estou tratando da imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e “malandro”. Refiro-me à sua versão mais obscura e, infelizmente, mais realista. No “mundo real”, o brasileiro é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência… em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto”.
Os eleitores com esse perfil já existiam, claro, não foram criados pelo bolsonarismo, mas nele encontraram sua forma de representação e expressão, como constata Lago.
“Agora esse cidadão comum tem voz. Ele de fato se sente representado pelo Presidente, que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar um palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender”.
É para esse contingente, um em cada três brasileiros, que Bolsonaro governa, sem se importar com as críticas do outro lado da sociedade que não segue suas ordens. Nesta inversão de valores, alimentada pelas fake news e pelas mentiras puras e simples nas redes sociais, o certo vira errado e o errado é o certo, o bonito fica feio e o feio se torna bonito.
“Ao assistir o show de horrores diário produzido pelo “mito”, esse cidadão não é tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou pela rejeição ao que vê. Ao contrário, ele sente aflorar em si mesmo o Jair que vive dentro de cada um, que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de dizer, extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu mais profundo e mais verdadeiro”.
“(…) É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos quando o Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF, instâncias vistas pelo “cidadão comum” como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias. Destruí-las, portanto, não é ameaçar todo o sistema democrático, mas condição necessária para fazê-lo funcionar”.
Em outras palavras, o que esse cidadão quer é um ditador, o líder que diz “eu sou a Constituição” ou que “quem manda aqui sou eu”, o mesmo que diz “cheguei ao limite” e “acabou a paciência”, como Bolsonaro fez na micareta golpista de domingo.
“Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes. Por isso, não basta perguntar como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população. A questão é saber como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo”, conclui o artigo.
Este texto assim claro e objetivo, sem rodeios, um retrato em branco e preto dos bolsonaristas e do seu líder, me fez entender melhor como chegamos a esse ponto de degradação social e política e como será difícil sair dele, depois que tudo passar.
Passei a entender melhor também a cabeça de quem escreve comentários repetitivos e agressivos neste blog, geralmente com letras maiúsculas, não para argumentar em contrário, mas para desconstruir o autor de pensamentos diferentes.
Me pergunto por que estudiosos como Ivan Lago nunca são convidados para participar dos debates na televisão, que só chamam meia dúzia de políticos ou “especialistas”, sempre os mesmos, numa pauta única e protegida que não sai do lugar.
É por isso que o Brasil não conhece o Brasil e leva um susto quando elegem alguém como Jair Bolsonaro.
Vida que segue.
RICARDO KOTSCHO ” BALAIO DO KOTSCHO” ( BRASIL)