A censura podia reprimir quase todas as formas de manifestação, da imprensa aos discursos. Mas em qualquer show, roda de bar ou sarau caseiro, quando os presentes entoavam “O bêbado e a equilibrista” (Aldir-João Bosco), formava-se imediatamente a grande cadeia lírica de resistência contra o arbítrio e a exclusão.
Crônica de 1999
Em seu portentoso “Brasil Nação”, amplo painel do Império, o grande Manoel Bonfim traça o retrato dos poetas líricos na constituição da nacionalidade.
Enquanto a elite produzia o massacre da guerra do Paraguai, os líricos construíam a Abolição. Enquanto políticos, magistrados e militares usavam o Estado para seus interesses, os líricos reproduziam a generosidade, o romantismo e a solidariedade, que tornar-se-iam valores definitivos da alma brasileira.
Os líricos do século 20 são os letristas da música popular. A seu modo, precisam ser eternos e contemporâneos, sintetizar os sentimentos nacionais em sua época e, ao mesmo tempo, projetá-los para as gerações futuras, eternizando o presente e ajudando a erigir, tijolo a tijolo, o grande obelisco da nacionalidade.
Poucos deles lograram essa síntese como Aldir Blanc.
De Noel herdou a estranha mistura de crueldade e lirismo, viva em “Retrato Encantado” e em “Mastruço e Catuaba”. De Orestes Barbosa, a capacidade de ser contemporâneo, presente em “Negão nas Paradas”. De Luiz Peixoto, o supremo talento de esculpir pérolas de lirismo a partir dos tipos sociais mais inexpressivos, como em “Reencontro”, ou trágicos, como em “Maçã Tatuada” Dos grandes autores negros – como Wilson Batista, Geraldo Pereira e Zé Ketty – o manejo dos instrumentos populares de resistência, como se observa em “Na orelha do pandeiro”.
Até agora, sua carreira inclui mais de 400 letras musicadas por compositores do calibre de João Bosco, Guinga, Edu Lobo, Maurício Tapajós e Moacyr Luz, entre outros, e interpretadas por cantores como Clara Nunes, Beth Carvalho, Elizeth Cardoso, Emílio Santiago, Fátima Guedes, Leila Pinheiro, Maria Bethânia, MPB-4, Nana Caymmi, Simone e Zizi Possi, e Elis Regina.
À exceção de Tom Jobim, Aldir foi o compositor mais gravado por Elis.Leia também: A fantástica família Ernest Dias, por Luis Nassif
Talento múltiplo
Seu talento não se restringe à música. Como cronista de costumes, marcou época desde as primeiras colaborações no Pasquim, em 1975, até suas colunas atuais em O Dia e O Estado de São Paulo. Também passou pela Última Hora, Tribuna da Imprensa, Jornal do Brasil, Planeta Diário e revista Casseta Popular.
Como escritor, publicou os livros “Rua dos Artistas e Arredores” e “Porta de Tinturaria”, pela editora Codecri, e “Brasil Passado a Sujo”, pela editora Geração.
No momento, prepara seu quarto livro, a ser lançado pela Editora Record, além de textos sobre a Vila Isabel, para coletâneas sobre o Rio de janeiro, que serão editadas pela RioArte, em conjunto com a Editora Relume-Dumará. Aldir estará ao lado de outros cronistas da cidade, como Antônio Callado, João Máximo, Antônio Torres e Carlos Heitor Cony, entre outros.
No teatro, preparou a trilha sonora de três peças. Com Moacyr Luz, musicou “Um Céu no Asfalto”, de Bertold Brecht; com Edu Lobo, “A mulher sem pecado”, de Nelson Rodrigues; com Guinga, “As Primícias”, de Dias Gomes.
É de sua autoria o roteiro de um dos maiores shows contemporâneos – “A Traversal do Tempo”, com Elis Regina –, e “Jornal Depois de Amanhã”, com MPB-4.
Essa carreira multifacetada gerou um sem número de homenagens e premiações, desde o Prêmio de Melhor Letrista Brasileiro, em concurso promovido pela revista Play Boy em 1978, à medalha de prata do Prêmio Colunistas do Rio de Janeiro, versão 1995, pela campanha publicitária da Copa do Mundo de 1994, passando pela Medalha Pedro Ernesto, outorgada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 1984.Leia também: Sax e piano, Daniela e Sheila. E um Jacob do Bandolim renovado, por Carlos Motta
Lembranças
Para os que atravessaram os anos de chumbo da ditadura, no entanto, o Aldir que ficará para sempre será aquele que, com suas músicas, ajudou a fortalecer a solidariedade da resistência.
A censura podia reprimir quase todas as formas de manifestação, da imprensa aos discursos. Mas em qualquer show, roda de bar ou sarau caseiro, quando os presentes entoavam “O bêbado e a equilibrista” (Aldir-João Bosco), formava-se imediatamente a grande cadeia lírica de resistência contra o arbítrio e a exclusão.
Não era necessário proselitismo nem rompantes retóricos. Bastava a música, belíssima, cimentando solidariedades.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)