Yan Boechat está nas ruas de São Paulo desde o início da pandemia falando com as pessoas, contando histórias, apontando gargalos e indo onde poucos repórteres conseguem ir e vão
Numa pandemia como a do coronavírus, as duas pontas precisam fazer parte da cobertura jornalística: os dados oficiais e as histórias das pessoas. É o que defende o jornalista Yan Boechat, sabendo que os dados oficiais não correspondem ao número real de casos de Covid-19 e que são pouco contadas as histórias que importam e que ajudam a compreender esse momento e os impactos para a sociedade.
Yan é especialista em rua e em falar com gente comum. Um dos melhores repórteres de campo em exercício hoje no país, o jornalista freelancer, formado pelo Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), está nas ruas de São Paulo desde o início da pandemia falando com as pessoas, contando histórias, apontando gargalos e indo onde poucos repórteres conseguem ir e vão.
O repórter fez as primeiras imagens da UTI do hospital Sancta Maggiore, que chegou a ter metade das mortes por Covid-19 de São Paulo no começo da crise. Yan passou uma semana visitando cemitérios da capital paulista e mostrou que havia subido o número de óbitos com suspeita de Covid, de casos que ainda seriam confirmados. Depois da reportagem, a prefeitura de São Paulo passou a divulgar o número de mortes com suspeita da doença, e não só os casos confirmados, para ajudar a dar a dimensão da pandemia e reduzir a subnotificação. O repórter também fez reportagens sobre a expansão da Covid na Cracolândia, entre as travestis do Centro de São Paulo, e foi à favela de Paraisópolis falar com as pessoas e saber da organização que a comunidade conseguiu fazer para atender os casos que já estão se multiplicando.
Depois desta entrevista, que foi realizada pela internet, o jornalista já produziu outras matérias com novas constatações. Yan assinou reportagem de capa do jornal O Globo do último domingo, mostrando que dobrou o número de mortes em casa por Covid. Em mais um trabalho persistente de reportagem, o jornalista conseguiu dar nomes e rostos a números e nos mostrar a conta do crescimento da doença. Não histórias isoladas nem números que naturalizam mortes.
Yan Boechat publica reportagens em texto e fotos nos principais jornais e sites do país, cobriu guerras em diversos países do Oriente Médio e da África. Cobriu Primavera Árabe, os combates contra o Estado Islâmico na Síria, conflitos na Venezuela e vários temas duros no Brasil, como as milícias no Pará.Leia também: Entrevista: Brasil realiza maior estudo do mundo de casos do coronavírus
Você confere a seguir um trecho da entrevista em texto. Para acessá-la na íntegra, assista ao vídeo abaixo:
Yan, queria te perguntar o que você está fazendo, por onde você tem andado e também falar sobre jornalismo, porque este pode ser um novo momento para nós.
A partir de 13 de março, a coisa começou a ganhar um contorno mais sério no Brasil e eu passei a ir pra rua. No começo eu estava pegando a minha câmera e estava indo pra rua. Primeiro eu fui ver o que estava acontecendo no Centro da cidade, se as pessoas estavam nas ruas ou não. Eu estava acompanhando as informações para ver o que estava rolando. Teve os primeiros pedidos para as pessoas ficarem em casa. Então eu comecei a circular. Eu fui pra rua porque eu acho que as coisas estão acontecendo na rua. Fiz uma matéria na Cracolândia. No final de semana fiquei rodando a cidade. Fui cobrir aquela transloucada manifestação a favor do Bolsonaro. E indo para a rua sempre, todo dia. Depois comecei a fazer plantão nos cemitérios. Ainda não fui pautado para nenhuma matéria. Adoraria ser porque dá menos trabalho.
O que você tem feito me lembra o que você faz quando vai cobrir guerra. É mais ou menos isso?
É isso que eu faço. Eu vou para a rua ver o que está acontecendo. Por exemplo, eu fiz essa matéria grande, que saiu na Folha, eu fiquei cinco dias indo todo dia de manhã cedo para os cemitérios para ver o que estava acontecendo ali. A partir da observação do que estava acontecendo, eu consegui perceber que tinha alguma coisa errada porque estava chegando muito caso de suspeita de Covid. E nenhum deles era confirmado. Obviamente estava acontecendo uma subnotificação das mortes.Leia também: Coronavírus: Negacionistas climáticos também negam a pandemia
Você acha que o campo é o que estava dando contraponto à dificuldade de dados oficiais?
Essa tem sido uma cobertura que, até pouco tempo, estava sendo feita muito com base em questões oficiais. Até porque os acessos são difíceis. É difícil entrar em hospital. A prefeitura aqui mesmo estava criando um monte de problemas para eu entrar nos cemitérios. Em alguns eu fui sem autorização, em outros eu consegui autorização. Mas o que eu acho é que uma crise dessas, você tem que cobrir nas duas pontas. Na parte oficial, mas você tem que ter repórter na rua para ver o que está acontecendo. Porque as coisas estão acontecendo na rua. As pessoas estão morrendo na rua.
Acho que a grande imprensa sofre dois problemas. Um é que ela está muito enxuta. Outra é que muitos jornais estão com medo de mandar os seus repórteres para a rua por questões legais. E tem muita gente com medo de ir trabalhar na rua, o que é compreensível.
E como você tem se orientado para a sua cobertura?
A gente precisa dar voz às pessoas comuns, a quem está sofrendo nessa crise. A quem vai sofrer nessa crise, que é gente. E eu sou um repórter de rua. Tenho feito isso há bastante tempo. Eu não sou um cara que tem grandes fontes no governo. Não cultivo grandes fontes no poder. Não é algo que me encanta muito. Eu sou muito ligado com fotografia também. Então ir para a rua faz parte desse jogo também, porque eu quero registrar as imagens e acho importante.Leia também: Coronavírus: Com baixa expressiva de mortes, Espanha começa a flexibilizar isolamento
Eu acho que o que está acontecendo muito é uma subnotificação. A falta de estrutura dos estados está ficando muito clara. A pessoa morre dentro de um hospital e não tem como saber do que ela morreu. A verdade é essa. Tem um lado muito triste das pessoas enterrando os seus entes queridos de uma forma muito agressiva. Corpo ensacado, cova rasa. Sem velório. Mas acho que o que está aparecendo, e vai aparecer cada vez mais, é que o Estado brasileiro vive à beira do colapso o tempo inteiro. A gente está operando sempre na beira do colapso. Quando algo extraordinário acontece, o colapso se torna real. E é o que vai acontecer a partir de agora. Não tenho dúvida disso.
Tem muita gente que voltou a ver TV para acompanhar o jornalismo. As que você encontrou na rua estão acompanhando a pandemia por onde?
Acho que as pessoas estão preocupadas na rua. Em especial, as famílias das pessoas que estão morrendo querem falar. Se sentem de certa forma amparadas ao ver um jornalista perto delas. Elas querem contar as histórias, querendo dizer ‘não é uma gripezinha’. Os profissionais que estão lidando na linha de frente querem falar também por conta das condições que eles estão trabalhando, que são complicadas.
Para acompanhar o jornalista nas redes sociais, acesse @yanboechat no Instagram e visite o site do repórter.
VANESSA PEDRO ” JORNAL GGN” ( BRASIL)
*Vanessa Pedro é jornalista, professora da Unisul e pesquisadora associada do objETHOS.