Quando se consegue uma bolsa internacional tão visível como a da Fundação Chan Zuckerberg (a pediatra que é mulher do fundador do Facebook), normalmente para-se e celebra-se. Mas os olhos vermelhos de Henrique Veiga-Fernandes e da sua equipa no Instituto Champalimaud mostram que, desta vez, não é isso que vai acontecer: o trabalho é muito na emergência contra a covid-19, não há tempo para festejos.
Desde o início da doença, o co-diretor da Champalimaud Research está praticamente dedicado à covid-19. E o seu Laboratório de Imunofisiologia está sobretudo a fazer testes, virais e serológicos. Aos funcionários e doentes do próprio centro: a sua sensibilidade, por serem doentes de cancro, exige que o espaço seja “covid-free”. E em mais três estudos exteriores: à população em profissões de risco de Loulé, e ao pessoal de saúde do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e do Santo António, no Porto.
A combinação dos dois testes, virais e de anticorpos – além de terem um objetivo prático de lutar contra a propagação da doença, vão permitir saber mais sobre ela. Nomeadamente sobre o que ainda não sabemos e que tem muito a ver com ser recente e, segundo Henrique, “quatro em cinco casos serem assintomáticos.”
O prémio da Fundação Chan Zuckerberg é mais uma demonstração da importância do trabalho de Henrique Veiga-Fernandes e da Fundação Champalimaud no trabalho de investagação, como diz o nome do centro, no “Desconhecido”. E é o segundo, na mesma linha, e também de outro pioneiro de Silicon Valley: foi o milhão e meio que Henrique ganhou da Fundação Paul Allen (do co-fundador da Microsoft) que permitiu arrancar com o estudo que mostrou as ligações entre o Sistema Nervoso e o Sistema Imunológico, nunca antes demonstradas.
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Tecnologia inovadora “Made in Portugal”
“Percebemos que o sistema nervoso dá instruções muito especificas ao imunitário”, explica Henrique. “Funciona como uma espécie de interface, apercebe-se do mundo lá fora e dá essas instruções: olha, faz isto, atua.” Para perceber que isto se passava a equipa de Henrique Veiga-Fernandes desenvolveu uma tecnologia super-inovadora e “totalmente made in Portugal”, de nome apropriado: Kiss, ou beijo. Esta tecnologia permite marcar e “estudar a relação que existe entre os neurónios, o sistema nervoso, e as células imunitárias, e como estes dois sistemas “se beijam” e interagem no pulmão.”
Objetivo? “Promover respostas do organismo mais eficientes contra infeções.” E, mais: identificar classes de moléculas totalmente inovadoras para novas curas de várias doenças. A abrangência desta investigação é fenomenal. Pode ter resultados em doenças em que o sistema imunitário intervém, tão díspares como autismo, diabetes, metabólicas, infecciosas, cancro, inflamação crónica… “A identificação de novas classes de fármacos é transformadora”, diz Henrique, visivelmente esperançoso. “Poderá não ser a solução para tudo mas vai-nos abrir pelo menos os horizontes”.
Foi por isso que a Fundação Chan Zuckerberg, sedeada em Seattle, olhou para este cantinho à beira Tejo. “Porque eles premeiam esforços pioneiros que vão desbravar território nunca antes caminhado. O “Desconhecido”, nisso estamos sintonizados. Não é ser inovador em algo que já se conhece, é o que não se sabe do que não se sabe”, diz Henrique.
Este prémio do Instituto Champalimaud é ganho na parceria com os investigadores Isaac Chiu e Stephen Liberles, ambos da Harvard Medical School, o primeiro especialista em neuroimunologia e investiga a interação entre os neurónios e as células imunológicas nos pulmões e na pele, e o segundo focado na neurociência, particularmente em “como o sistema nervoso é capaz de sentir o que acontece nos órgãos internos, como o intestino”.
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Um mundo sem doenças
A missão de Zuckerberg e da sua mulher, pediatra de profissão, é “eliminar as doenças todas do mundo no tempo vida dos nossos filhos” – o que eles consideram realista no horizonte de 2100… A ver vamos. Mas, entretranto, há novas doenças para conhecer e tratar, como mostra a covid-19. Quanto mais a investigação estiver desenvolvida, para trás, mais rápido se poderá combater, à frente.
Ou seja, não tendo nada a ver com a covid-19, também esta investigação do Instituto Champalimaud pode vir a ser determinante nesta doença. “O novo coronavírus tem uma elevada capacidade para infetar células nervosas”, diz Henrique. “A descodificação de como os neurónios pulmonares dão instruções às células imunitárias, durante a infeção viral, dará informação valiosa sobre a forma como esses dois sistemas podem cooperar no combate à infeção pulmonar”.
Os três estudos que o Instituo Champalimaud está a desenvolver podem ajudar, para já, num conhecimento mais rápido e concreto. Combinam a epidemiologia – o estudo da doença – e a imunologia – o estudo da imunidade à doença. Por isso aliam os dois testes – o virológico, que funciona bem para perceber se alguém está doente, e o imunológico, para perceber se alguém já esteve em contacto com o vírus e desenvolveu anti-corpos contra ele.
Dois testes contra a covid-19
“A utilização dos dois testes – diagnóstico, útil na primeira semana, e dos testes serológicos, permite-nos alargar a janela temporal na qual temos sensibilidade para detetar a doença. Há muita informação que se consegue retirar dos testes serológicos”, explica o investigador. “Porque quatro em cinco doentes são assintomáticos e como tal com os testes diagnóstico nunca vamos apanhar essa parte da população. Não tendo sintomas não se dirige a um centro médico e é muito difícil termos precisão dos números.”
Melhores números podem levar a melhores decisões, nomeadamente políticas – que urgem, nesta fase de reabertura. Leonor Beleza, a presidente da Fundação Champalimaud, participa no comité de técnicos que se reúne todas as terças-feiras para aconselhar o governo e o Presidente nas medidas a tomar. “Não sendo a nossa vocação, nesta situação de emergência foi uma aposta, quer da investigação quer da administração, de dar um contributo para a sociedade. Estamos a dar o exemplo, e fomos os primeiros a colocar em cima da mesa a realização dos testes imunológicos. Agora outras instituições também vão fazer. Ainda bem, porque a Fundação, sozinha, não fará nada”, diz o investigador.
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Como exemplo, o que a Fundação faz aos seus próprios funcionários e doentes. Todos são avaliados, à entrada, para ver a febre. Depois, se há algum sinal, são testados – e também antes de intervenções e tratamentos. As equipas, que funcionam em espelho, são testadas antes dos períodos, de 15 dias, em que entram ao serviço.
De resto, há distância social, máscaras e muito líquido desinfetante. “Mas isto, claro, só pode funcionar porque nós temos a capacidade de fazer os testes rapidamente e dentro de casa”, explica Henrique. Foi, no entanto, o investimento importante para “continuar a funcionar e a servir os doentes.” Um teste virológico, a preços de mercado, vai acima dos cem euros. Um teste imunológico andará pelos 40.
No caso dos testes do município de Loulé, a 1235 trabalhadores de risco, desde jornalistas a funcionários de limpeza da Câmara Municipal – foi montada uma infraestrutura local de recolha junto do Estádio, onde as pessoas fazem os procedimentos sem sair do carro. Os testes são rápidos, funcionam entre meia hora a três horas – “só assim são operacionais” – e dão como resultado uma melhor gestão das equipas e do agora chamado “regresso à normalidade”. A ciência ao serviço da sociedade, no mais puro exemplo.
E a investigação? O tratamento de toda a informação integrar-se-á no trabalho da Fundação Champalimaud que gira à volta das duas áreas – neurociências e cancro. “Há uma parte hoje importante para a investigação do cancro, e começamos agora a perceber das neurociências que é a forma como o sistema imunitário contribuiu para esse tipo de doenças. E nessa compreensão sabemos já há bastante tempo a importância de respostas a vírus como este. É o tópico que estudamos, e agora com uma perspetiva diferente porque há uma fação muito significativa dos doentes que acabam por falecer de covid com uma resposta imunitária desregulada – uma imunopatologia – exagerada, é a tempestade de citocinas. Há tal forma uma ativação exacerbada do sistema imunitário que a pessoa acaba por morrer da sua própria cura”.
Saber o que não se sabe que não se sabe. Começar a suspeitar. E avançar pelo desconhecido fora. Na resposta ao covid-19 como em tudo o resto.
Entrevista: “Testes serológicos vão permitir não estar a estabelecer modelos com a parte, mas com o todo”
Até que ponto é que a imunologia pode ser o segredo para voltarmos a regressar à vida ativa?
Há dois pontos fundamentais da ciência que são críticos para isso. A epideomiologia – estudar, quantificar e fazer previsões para o futuro de como será o comportamento da doença. Mas esta ciência só se poderá aproximar da real incidência da infeção quando tem números fiáveis. E é aí que entra a imunologia. E porquê? Porque numa doença em que temos 4 em 5 doentes assintomáticos, se estivermos a lidar com esta população só com testes de diagnóstico, só estamos na realidade a estudar 1/5 das pessoas infetadas. A imunologia e os testes serológicos vão permitir não estar a estabelecer modelos com a parte, mas com o todo. E torna as previsões mais precisas e eficazes. Isto é importante porque as medidas políticas da situação que vivemos, o confinamento, a distância social, a retoma das atividades sociais vão estar baseadas em números. Todos ouvimos falar do R0 – não é nada mais nem nada menos do que a quantidade de pessoas que cada pessoa infeta.
Mas se não soubermos quantas pessoas foram de facto infetadas, isso serve para alguma coisa?
É uma estimativa. Não é preciso. Mas o que sabemos, com os métodos que temos é que uma pessoa infetada transmite a outra. A partir do momento em que esse valor desce para baixo de um, reduzimos a capacidade de infeção. E portanto a epidemia tende a descer.
Em que é que a banalização dos testes serológicos que medem os anticorpos, pode fazer com que as decisões políticas sejam tomadas de outra forma?
O que teremos serão decisões tomadas de forma bem mais informada. Porque os resultados são mais robustos. Depois, os testes serológicos têm vindo a revelar outras coisas. Inicialmente, quando foi decretada uma epidemia por um agente na China falava-se de uma taxa de mortalidade elevada, superior a dois dígitos. E isto era uma catástrofe – podia dizimar a população humana. Não é caso. E isso é importante dizer em termos de perceção da opinião pública. É um problema de saúde publica, é uma doença com quadros clínicos extraordinariamante severos, como não se tinha visto há décadas e décadas. Mas com os estudos serológicos o que se começa a perceber é que há tantas pessoas que tiveram contacto com infetados que na realidade a taxa de fatalidade é bastante inferior. Não iria ao ponto de banalizar e dizer que é semelhante à gripe sazonal, mas poderá ser apenas ligeiramente acima. E isso faz a diferença toda.
Qual?
Do ponto de vista de saúde pública. Porque não estamos a lidar com uma doença que seria a nova peste negra. É uma infeção viral, sim, tem quadro clínico grave, cavalgante, mesmo. Mas que tem uma taxa de mortalidade mais baixa do que a pensada e que atinge uma fação da população muito bem identificada. E portanto, esses dois dados permitem-nos provavelmente adoptar medias que garantam a proteção dos setores mais expostos e outras, mais favoráveis à retoma da actividde económica nos setores que podem estar afetados mas não desenvolvem doença.
Estamos a falar de…
Crianças, pessoas em idade ativa e que não têm outro tipo de doenças que poderão ser fator de risco.
“O que estou a dizer não é para colocarmos de repente a população mais fragilizada em confinamento e criarmos os filhos e os enteados. Não. “
Isso é uma questão matemática, depois entra a política.
Isto é uma questão de política de saúde publica. Não é só matemática. Sairmos do confinamento de uma forma faseada e gradual. A nível do território, ou em setores. O que estou a dizer não é para colocarmos de repente a população mais fragilizada em confinamento e criarmos os filhos e os enteados. Não. Em termos de investimento público…. por exemplo, foi o que aconteceu aqui na Fundação: foi não parar as atividades, e investir na segurança da população que está em mais risco. E portante esse é o desígnio para sairmos isto.
E isso seria o quê? Por exemplo, em relação aos avós e netos?
À partida, com a abertura das escolas – essas crianças vão para as escolas e essa questão deixa de colocar-se. Onde temos uma enorme incidência é nos lares. Os resultados de Itália, Reino Unido, todos os países, mostram que uma grande percentagem da mortalidade deu-se em lares. Onde há uma grande densidade de pessoas de risco, confinadas a um espaço fechado. Nesses locais, políticas de testes regulares – aos profissionais e aos utentes – seria extremamente importante. Os testes só podem ser eficazes se puderem estar implementados no terreno. Daí que esta complementaridade seja importante – diagnóstico, imunologia.
Quem tiver um teste positivo de imunidade não precisa de fazer outro…
Isso, associado com regimes de trabalho em espelho, permite criar um sistema em que com muito maior segurança conseguiremos continuar a prestar os melhores cuidados, garantindo um retorno a um novo normal de atividade económica. Até porque temos neste momento uma enorme crise económica já instalada. E social, que só tenderá a aumentar.
“Para falarmos de imunidade de longa duração…não sabemos. Podemos voltar a falar daqui a um ano e talvez seja capaz de responder.”
Na semana passada a própria OMS deu sinais contraditórios sobre imunidade. Fica-se ou não imune depois de ter tido a covid-19?
O que sabemos: numa parte significativa de pessoas afetadas há desenvolvimento de anti-corpois específicos para este vírus, mas a existência de anti-corpos não significa que a pessoa está imune. O que é que imune quer dizer? Implica que seja infetado uma primeira vez, e está mais protegido quando é reinfetado. Isso ainda não sabemos.
Porquê?
Por uma razão simples: é uma infecção nova. E para falarmos de imunidade a um mês, dois meses, ou de longa duração… Podemos voltar a falar daqui a um ano e talvez seja capaz de responder.
É uma questão de tempo?
Exatamente. Mas apesar de isto ser muito recente já sabemos muita coisa. e já sabemos que a capacidade que os anti-corpos têm de neutralizar o vírus é proporcional à quantidade de anticorpos que a pessoa infetada tem. Quem produz mais anticorpos tem um soro que vai ser mais eficiente a neutralizar o vírus. E isto é uma indicação, indireta de que estarão mais protegidos. E vice-versa. Indivíduos com uma quantidade mais baixa de anticorpos – não têm uma capacidade tão importante de neutralizar o vírus. Isso sabemos. Sabemos que o plasma de indivíduos infetados pode ser usado para doentes – e tem havido resultados interessantes. Não é uma abordagem que possa ser escalada. O outro ponto importante é que em modelos de primatas não humanos, após uma primeira infeção, e num espaço relativamente curto de tempo, estão protegidos da nova infeção.
E o que ainda não sabemos?
É essa a grande discussão. Primeiro: qual a percentagem de indivíduos infetados que desenvolve anticorpos. Faltam-nos estudos populacionais que nos possam dizer. A grande maioria provavelmente desenvolve, mas não sabemos se desenvolver anticorpos significa imunidade para toda a gente. É possível e razoável que assim seja. Porque há mais quatro coronavírus na população mundial. O que sabemos dessas infeções é que há uma imunidade que se estabelece. Não é para o resto da vida – de curta a media duração. E é baseada não apenas em anti-corpos, mas baseada também em células T – não produzem anti-corpos mas matam as células que estão infetadas. Neste caso concreto, ainda é cedo para dizer.
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Já se consegue perceber a resposta de cada pessoa ao vírus e o que determina a morte?
Não, isso é uma enorme incógnita. E não é muito diferente no contexto da covid ou outro tipo de infeção. O que conseguimos já definir, é que dentro desta população mais suscetível, o sistema imunitário é menos reativo. E isso dar-lhe-á menos capacidade de lidar com a infeção e permite que se instale de forma mais gravosa.
“Agora o que se começa a perceber é que haverá alguns fatores ambientais bastante importantes. Um deles é a qualidade do ar. “
Mas isso mais uma vez é igual a todas as doenças deste género, ou não?
Não, depende. Há doenças que têm uma incidência mais elevada em crianças. Depende muito. Mas em termos de quadro clínico, não é diferente da gripe sazonal. Em 2017 não andámos muito longe, na Europa de 150 mil mortes. 2011 foi ainda pior. E aí o grupo de risco é semelhante – e as normas da DGS são as mesmas, vacinação a idosos e pessoal clínico. Quando tivermos uma vacina a política vai ser igual. Porque a população prioritária é a mesma.
Não há nada de diferença entre países que mostre imunidades específicas?
Estamos a presenciar – oportunidade única – uma pandemia, e o vírus estar distribuído de forma tão global e rápida só vem demonstrar que estamos todos virgens para ele. Não temos qualquer proteção. Do ponto de vista de proteção genética… ainda é cedo para dizer. Iremos encontrar agora o gene X numa população…? Há estudos nesse sentido. O próprio estudo da pandemia indica-nos que não haverá um grupo, ou um país mais protegido. Agora o que se começa a perceber é que haverá alguns fatores ambientais bastante importantes. Um deles é a qualidade do ar. E isto carece de confirmação, mas por exemplo em Itália, a taxa de mortalidade ou fatalidade na Loombardia é muito superior ao resto do país. E há uma correlação direta com a qualidade do ar – a Lombardia tem uma qualidade péssima pela natureza geográfica, humidade, está ali nos pré-alpes. No caso de Itália é claríssimo.
Estas teorias da imunidade de grupo, que foram muito discutidas, fazem mesmo sentido?
Na realidade não houve nenhum país que tenha apostado cegamente nisso. Mesmo os que damos como exemplo, Suécia e Holanda,t iveram medidas de contenção. O distanciamento físico opera alterações profundas na forma como as pessoas se relacionam e trabalham. A ideia da imunidade de grupo é que ao aumentarmos, na população, a percentagem de indivíduos com contacto com o vírus, algum grau de imunidade se vai desenvolver. Isto não está demonstrado para a covid-19, mas está para outros agentes infecciosos. Seria surpreendente que não acontecesse a mesma coisa. Imunidade de grupo é um nível a partir do qual há uma percentagem da população que já tem um grau de proteção e não pode funcionar como veículo de transmissão do vírus entre pessoas. É uma espécie de barreira biológica. Se multiplicarmos isto por milhares de pessoas a epidemia já não se pode propagar e acaba por ficar estancada. E porque uma infeção deste tipo depende do comportamento de grupo…. O vírus não é o inimigo, o inimigo é a proximidade das pessoas. Porque se nós não estivermos próximos o vírus não passa de uma pessoa para a outra. Isto varia muito de doença para doença, mas está estimado esta barreira, para ser formada tem de contaminar à volta de 60 a 70% da população. A realidade é que esse nível de proteção de grupo é crítico… Porque com uma imunidade mais elevada as possíveis segundas e terceiras ondas serão mais fracas.
“Com as medidas, compramos tempo. O que sabemos hoje, do ponto de vista cientifico é incomparável com o que sabíamos há um mês e meio. Percebemos melhor o que se está a passar não só do vírus, mas do comportamento da epidemia em diferentes países.”
A consequência disso é a mortalidade mais elevada – o preço a pagar.
Falamos muito do achatar da curva. Se não houver medidas nenhumas teríamos casos que disparariam muito rapidamente. A taxa de mortalidade em si não ia mudar, mas sim o numero de indivíduos que iam precisar de cuidados intensivos. E entraríamos no problema de o SNS não conseguir dar resposta adequada e teríamos um aumento de pessoas que poderiam morrer. As medidas que adotamos levaram ao achatar da curva. Isto tem imensas vantagens. Primeiro deu-nos tempo para nos prepararmos. Estamos do ponto de vista operacional e logístico mais bem preparado para uma segunda fase. E isso é muito importante. Depois, compramos tempo e esse tempo, o que sabemos hoje, do ponto de vista cientifico é incomparável com o que sabíamos há um mês e meio. Percebemos melhor o que se está a passar não só do vírus, mas do comportamento da epidemia em diferentes países. E isso permite ajustar medidas. Agora isto é natural: quanto mais baixos são os números de casos numa primeira onda, menos proteção de grupo exsitirá.
É uma decisão politica dificílima de tomar…
Muito difícil. E que na realidade tem de ter nos dois pratos da balança o que seria a situação ideal do ponto de vista sanitário e os outros factores – a vida numa sociedade não se resume a isso.
A pobreza que advém de uma crise pode ter também efeitos na imunidade?
A pobreza está associada a indíces de saúde e bem estar mais reduzidos, que não passa exclusivamente pela imunidade, mas passam por muitos outros fatores: obesidade, doenças cardiovasculares, metabólicas, diabetes. E como sabemos esse tipo de doenças são fatores de risco tremendos para esta infeção.
” Alguém que tenha uma dieta equilibrada – com frutas, vegetais, produtos frescos – não carece de suplementos. Até poderá haver problemas por ter um excesso.”
O que é que pode ajudar na imunidade? Alimentação, sono, vitaminas?
Até há bem pouco tempo dizia-se que o sistema imunitário servia para combater infeções. Nas ultimas décadas tem-se vindo a demonstrar que o sistema imunológico serve para muito mais – e o trabalho do nosso grupo tem estado na linha da frente. É uma interface com o meio ambiente tão importante como o sistema nervoso que é o que nos está a permitir estar aqui a conversar. E porque? Porque as células do sistema imunitário têm capacidade de perceber e interagir com fatores ambientais com que temos de lidar todos os dias. a dieta. O nosso microbioma, as horas de sono, com quem contactamos. e isso é toda uma nova área que nos está a abrir horizontes. E estamos a aperceber a importância deste sistema para a preservação da nossa saúde. Nós estamos a investigar a junção dos dois sistemas.
Onde é que entram as vitaminas?
Sabemos que há várias famílias de glóbulos brancos que requerem certo tipo de vitaminas para desenvolverem e exercerem a sua atividade de forma mais eficiente, e que ao reconhecerem essa vitamina conseguem modular a resposta imunitária tornando-a mais eficiente. Vitamina D, C ,A são importantes. Agora alguém que tenha uma dieta equilibrada e normal – com frutas, vegetais, na realidade, produtos frescos – não carece de suplementos. Até poderá haver problemas por ter um excesso.
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É mais importante o quê?
Ter uma vida normal. Dieta equilibrada, um padrão o mais normal possível de sono – o que é um grande desafio neste período, manter as rotinas. E isto está relacionado com o estudo que publicamos sobre a importância do sono…
Que esperança podemos ter de haver uma vacina?
Se tivéssemos uma vacina daqui a 18 meses seria extraordinário. Porque são processos que em circunstâncias normais demoram mais tempo. E uma coisa é termos a vacina, outra é ser eficaz – e o ser eficaz, quando não temos nada, vamos ter de fazer estudos… E depois há o fazer chegar a vacina a quem dela precisa. E esse vai ser mais um desafio do ponto de vista logístico. Não vamos estar a falar em populações definidas – vamos falar de toda a gente. Depois podemos definir políticas, etc… quem leva primeiro. Mas vai ser um enorme desafio à produção.
Há doenças em que nunca houve vacinas – o HIV, por exemplo…
Isto é um vírus de RNA, houve ensaios com drogas… não correram bem, mas a investigação é constante. Se essas drogas que já estão a ser usadas pudessem funcionar com esta poupavam-nos muito tempo, porque a sua segurança na utilização já está demonstrada. Passos de regulação podiam ser ultrapassados.
“Há um fator importante. O medo. As pessoas têm receio e o receio não desaparece de um momento para o outro. É algo progressivo. E vai levar mais tempo a desaparecer do que demorou a instalar-se. “
Em termos práticos, o que se deve dizer à população para as preparar para o passo seguinte, sem entrar em pânico?
Há uma necessidade de um retorno à normalidade, mas será uma normalidade possível. Um novo normal. Falar com distanciamento – com máscaras, em ambientes fechados. E há um fator importante. O medo. As pessoas têm receio e o receio não desaparece de um momento para o outro. É algo progressivo. E vai levar mais tempo a desaparecer do que demorou a instalar-se. Vai ser um processo longo. Em termos de medidas de saúde publica quer em termos de retoma económica. O modelo que será mais compatível do ponto de vista social de implementar será de retoma faseada progressiva e do ponto de vista territorial, distinto. Porque as zonas não têm todas a mesma incidência.
Não vamos poder continuar a pensar no numero de casos, ou mortos…
No inicio da epidemia os números a que prestávamos atenção eram outros. Há informação que deixa de ser relevante. Não do ponto de vista cientifico ou medico. Mas para aquilo que é a mensagem que passa para a população, passa a ser menos importante. Mesmo na agenda mediática começamos a ouvir falar muito da retoma, e da necessidade de retomar a economia, de tomar medidas para que a população ganhe confiança e se possa sentir mais segura.
CATARINA CARVALHO ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)