Em entrevista ao EL PAÍS, o presidente do CEBRAP diz que demitir Moro é um bônus para Governo negociar com o centrão. Para ele, momento é de baixar as armas na política e parar de culpar os demais
No meio da pandemia de coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro forçou o afastamento de dois de seus principais ministros. O primeiro a sair foi Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), da Saúde. E, na última sexta-feira, Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública. A demissão do popular ex-juiz, principal estrela da Operação Lava Jato e responsável pela condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por corrupção, elevou ainda mais uma crise política forjada por Bolsonaro, que aposta por radicalizar ainda mais sua retórica ao mesmo tempo que boicota os esforços por garantir o isolamento social. Está o Brasil caminhando para mais um impeachment ou para outra ditadura?
Para o filósofo Marcos Nobre, professor da UNICAMP e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), Bolsonaro está se refugiando em sua base mais radical de eleitores enquanto negocia com o centrão no Parlamento para conseguir mais tempo. Porém, acredita que é uma questão de tempo para que seja destituído do cargo. “Bolsonaro vai para a lona e sabe disso”, explica em entrevista ao EL PAÍS. Ele opina que a popularidade de Bolsonaro se reduzirá a seu eleitorado mais radical, mas destaca que isso por si só não garante uma maioria social pelo afastamento. Para que isso aconteça, insiste que as principais forças políticas devem negociar e repactuar as regras de convivência democrática. “Caso contrário, vamos continuar produzindo Bolsonaros. Não adianta só tirar o cara”.
Pergunta. Após a eleição de Bolsonaro, você chegou a dizer ao EL PAÍS que seu governo era feito de feudos. Um deles era o de Sergio Moro, que agora deixa o cargo atirando forte contra o presidente. O que representa a implosão desse feudo para a base bolsonarista?
Resposta. O fato de Bolsonaro demitir Moro é tão importante quanto o fato de fazer isso agora. Essa demissão tem várias funções. Temos hoje um número de mortes por causa do coronavírus que é padrão Espanha. E não estamos discutindo o nível de desespero para o qual estamos indo, porque estamos o dia inteiro discutindo a crise política. Portanto, existe um elemento diversionista importante. Outro aspecto importante é que Bolsonaro se deu conta de que a pandemia vai atingir o governo dele. Ele tem até agora cerca de um terço do eleitorado, segundo as pesquisas, e sabe que não vai conseguir manter essa fatia. Então, decide fazer um movimento de recuo para se proteger em seu núcleo de apoio fanático. Segundo o Datafolha, representa cerca de 12% do eleitorado. Seu raciocínio é o de que vai ter crise econômica e vão vir com impeachment para cima dele, então é melhor garantir uma base de apoio mínima. Parte desse eleitorado que ele vai perder está com Moro. O ex-ministro era símbolo de uma expansão da base bolsonarista de 12% para 30% do eleitorado. Mas, a partir do momento que Bolsonaro se recolhe para os 12% iniciais, ele escolhe fazer um governo de guerra. E, num governo de guerra, você não pode ter uma pessoa que é maior que você. Isso explica tirar Mandetta e também explica tirar Moro. Ele vai se livrando de todas essas pessoas.
P. As pesquisas ainda mostram Bolsonaro com ao menos um terço do eleitorado. Quanto tempo para que haja uma queda?
R. Temos dificuldade de comparar as últimas pesquisas. Como estão sendo feitas de maneira remota, não temos condição de fazer uma boa comparação. Mas a tendência é ir ladeira abaixo e, em questão de meses, ser reduzido a esse núcleo duro. Rápido em política são dois meses. E esse tempo tem que ser aproveitado pelas forças políticas para conversar. Esse é o ponto que acho essencial. Estamos no isolamento e existe uma dificuldade de comunicação, de negociação política, enorme. Bolsonaro está contando com esse tempo e essa dificuldade para ver se negocia com o centrão.
P. Uma eventual queda na popularidade é o suficiente para derrubar o presidente?
R. Não adianta ele ficar reduzido a 12%, 10% ou 8% do eleitorado. É preciso também formar uma maioria esmagadora pelo afastamento. Na última pesquisa Datafolha, a maioria reprovava a atitude dele durante a pandemia, mas ao mesmo tempo era contra a renúncia. Isso mostra que uma maioria não nasce espontaneamente. Ainda assim, a possibilidade de se formar essa maioria a favor do impeachment é grande. Mas há obstáculos, como as divisões no campo democrático, entre a direita e a esquerda, por exemplo. É muito evidente que Rodrigo Maia não vai acatar um pedido vindo da esquerda. E que a esquerda será obrigada a negociar com a direita para apoiar um pedido de impeachment que venha de alguma figura considerada de centro e não seja um potencial candidato. Como um ex-ministro do STF ou um ex-ministro da Justiça.
P. É viável um acordo político? O PT vem até agora resistindo a apoiar um pedido impeachment no Congresso Nacional.
R. O acordo para afastar o presidente não deve se dar apenas entre as forças políticas, mas também na sociedade. Essa maioria esmagadora não é espontânea, só se forma quando as pessoas decidem negociar. E que tipo de acordo será esse? A esquerda hoje se pergunta o que pode ganhar com o impeachment e deixar o poder com o vice-presidente Hamilton Mourão. É um erro político grave, porque as instituições brasileiras estão em frangalhos, e permitir que Bolsonaro continue a ser presidente é permitir que a destruição avance. Ao mesmo tempo tem um lado bom: minha leitura é a de que o PT está resistindo a apoiar o impeachment porque quer esperar um pedido consistente que venha de uma figura de centro, acima da disputa eleitoral. Poderia ser os ex-ministros do STF Sepúlveda Pertence, Carlos Ayres Brito, Nelson Jobim… E, para que a esquerda apoie Mourão virar presidente, precisa saber que está negociando que seu Governo não seja de continuidade e ultraliberal. Se a saída é pela direita e não é possível ocupar o poder, então é preciso colocar limites. É uma negociação complexa que envolve renegociar a democracia e as regras da convivência política. Não pode acontecer de uma parte do sistema político entregar a outra para os leões e transformar o jogo político em um jogo de destruição do adversário. O que precisa voltar é a regra de convivência. Isso é o que permite um impeachment que nos livre de Bolsonaro. Caso contrário, a estrutura fica igual e vai continuar produzindo outros Bolsonaros.
P. As ruas são impossíveis de ocupar, mas temos visto panelaços convocados por diversos setores da sociedade, da esquerda à direita. É o início de uma frente ampla, ao menos na sociedade?
R. É um sintoma de formação dessa frente. Quando isso for concretizado, as nossas diferenças podem ser muito grandes, mas devemos estar de acordo que Bolsonaro representa uma ameaça para o país. E que na hora das eleições cada um defenda suas posições. Essa convivência não existe no Brasil há seis anos. A política se tornou terra de ninguém. Parte do eleitorado usa as eleições como arma apontada para a cabeça de outra parte do eleitorado. Tem que tirar a arma do negócio. E o momento exige que as pessoas deixem de culpar as outras por tudo. Culpamos a esquerda, Lula, Temer, as elites, os evangélicos… Se isso não acabar, ou não diminuir num nível que possamos conversar, vamos continuar produzindo Bolsonaros. Não adianta só tirar o cara.
P. O que significou o pronunciamento de Moro para o debate sobre o impeachment? As acusações de que Bolsonaro quer interferir politicamente na Polícia Federal materializam o risco à democracia que tanto vem se falando?
R. Para mim isso é evidente, mas não só por causa dessa manifestação de Moro. É no conjunto da obra. Ele falou durante a campanha que o modelo de democracia era o modelo da ditadura. E não só falou durante a campanha, sempre falou que era ali que queria chegar. O pronunciamento é só mais uma evidência do que Bolsonaro pretendia fazer, mas que agora não consegue porque foi atingido por uma pandemia. Bolsonaro não se encontrava nas camisas de forças das instituições, ele estava acumulado forças. E a fala de Moro põe a nu tudo isso. Agora, sejamos claros: o Moro fez até um aceno ao PT e abriu o leque do impeachment. Foi uma menção totalmente pensada. Para mim, agora é uma questão de tempo e o quanto o país vai sofrer até fazer isso. Mesmo remover alguém que faz tanto mal para o país não dá para ser imediatamente. Estamos numa condição de isolamento em que todos nossos esforços estão voltados para a crise sanitária. E todas essas conversas demoram.
P. O que representa Bolsonaro demitir Moro, reduzir sua base de apoio e, ao mesmo tempo, estar negociando com o centrão?
R. Demitir Moro é um bônus para a negociação com o centrão. É dizer “eu me livrei de Moro, então vocês podem ficar tranquilos e podemos fazer acordo”. Mas Bolsonaro tem um problema aí: pode ser que consiga convencer essa base mais fanática de que é necessário fazer acordo com o centrão para preservar o mandato, mas essa base é suficiente para impedir um impeachment? Não. É uma base muito pequena. Ele segue exposto ao impeachment. Ao mesmo tempo, não é porque tem uma base pequena que vai se formar uma maioria esmagadora a favor da saída dele. Ele precisa impedir uma maioria esmagadora de mais de 2/3 no Parlamento para conseguir a saída dele. Para isso, precisa do apoio que só o centrão pode dar, fazendo acordo e buscando fortalecer o centrão nas eleições municipais. Ele precisa então agravar a crise fiscal. Foi por isso que o general [e ministro-chefe da Casa Civil] Braga Netto apareceu com esse programa econômico que ninguém sabe de onde tirou nem sabe o que é. Aquilo ali foi só para dizer que está em curso uma negociação com o centrão e, portanto, esse governo não tem mais a agenda Paulo Guedes. Naquele momento ele foi demitido de suas funções.
P. O acordo com o centrão é viável? Bolsonaro já se mostrou não ser um negociador confiável… O MDB já lançou nota dizendo que não quer ocupar cargos no Governo.
R. Temos que pensar que o centrão são muitos também. Tem o centrão estratégico, de médio e longo prazo, e tem o centrão que vai aproveitar o que tem aqui pelo tempo que tiver. Quando Roberto Jefferson entra na parada, é o beijo da morte de qualquer presidente. Ele só não conseguiu matar Lula, mas conseguiu matar Fernando Collor e vai conseguir matar Bolsonaro. É nesse momento que os abutres chegam para pegar a carniça que houver pelo tempo que houver. E seis meses num cargo são seis meses.
Outra figura importante nisso tudo é o presidente da Câmara Rodrigo Maia. Ele não vai apoiar um impeachment sem esse acordo grande entre as forças políticas. É preciso muita conversa, para garantir que as eleições municipais tenham um mínimo de equidade, que ninguém mate ninguém… Agora, foi a ala militar que entrou e que fez essa negociação com o centrão. Os militares podem perfeitamente ter feito uma negociação que também valha para Mourão. Eles podem estar pensando na frente, negociando em nome do Bolsonaro um acordo que valha para Mourão. A ala militar também tem que se livrar dessa encrenca.
P. Quais são as chances de Bolsonaro sobreviver?
R. A chance de sobreviver é muito baixa. Se Bolsonaro ficar reduzido ao centrão especializado em carniça, ele está morto. Para se estender no poder, precisa negociar. Mas ninguém confia nele. Quando o general Santos Cruz fez um acordo com o centrão, o que Bolsonaro fez? Demitiu Santos Cruz. Neste ano, depois de fazer acordo sobre orçamento, o que fez? Desfez o acordo. Ele segue a lógica de permitir que o acordo seja feito, de dar corda e depois puxar a corda no pescoço de quem está negociando para enforcar o pescoço. Só que agora ele não tem capacidade de puxar corda nenhuma. Ao mesmo tempo, ele não tem muita saída a não ser radicalizar. Estamos só no começo da desgraça sanitária e econômica. O que vai vir é muito pior, por uma razão simples: fizemos tudo meia boca. O governo não tomou as medidas de isolamento que deveria ter tomado, nem as medidas econômicas necessárias para o isolamento. Esse tipo de combinação significa o prolongamento de nossa desgraça. Bolsonaro vai para a lona e sabe disso.
P. Bolsonaro se mostrou um líder incapaz de lidar com a crise?
R. Me irrita um pouco quando a pessoa fala que ele é burro ou louco. Aí fica muito fácil de explicar. Mas o que explica ele tomar as atitudes que tomou e se tornar um dos quatro negacionistas do coronavírus em todo o mundo? Ele olhou e viu que não tinha saída: se resolve reorganizar o sistema e dirigir o sistema, acabou o seu discurso, tudo o que falou até hoje. Defender o país seria estelionato eleitoral. O método dele é o caos. E ele fez uma adaptação desse método, ao permitir que o sistema se reorganizasse em alguma medida, com Mandetta organizando uma centralização do sistema sanitário. Só que, ao mesmo tempo, ataca o isolamento e as medidas que iriam acabar com o governo dele.
P. Um autogolpe com apoio dos militares parece improvável a essa altura dos acontecimentos. Mas o bolsonarismo é muito forte nas bases das polícias militares e nos quartéis do Exército… Até que ponto isso representa uma ameaça? Pode haver uma espécie de insurgência ou de motim policial como ocorreu no Ceará em larga escala?
R. Isso sempre esteve no horizonte porque Bolsonaro sempre deixou claro que o objetivo era dar um golpe. Ele criou toda sua base de eleitores nas forças de segurança privadas e públicas. Mas a queda de Moro é uma fratura muito importante também nessa área de segurança. O desespero do gabinete do ódio é justamente quando eles veem que estão perdendo de goleada nas redes sociais faz tempo. E agora eles estão levando uma lavada de 7 a 1. Isso não significa que essa base já não tenha disposição beligerante, insurrecional. Ele pode manter essa base de fanáticos, que podem cometer atos isolados, mas falta aquele caldo de cultura que estava sendo criado, que era o caldo de cultura 1964. Ou seja, que um general que comanda determinado setor saia com a primeira fileira de tanques [e dê início a um golpe]. Ainda assim, o risco para a democracia continua. Se não houver uma repactuação da democracia, Bolsonaro sai do impeachment como vítima, como mártir, como alguém apeado do poder. Deve ser algo construído da maneira mais parecida com o impeachment de Collor, com um acordo de mínimos.
Futuro político de Sergio Moro
P. Moro fez pronunciamento de candidato?
R. Sim, fez um discurso de candidato, de alguém que vai agora para uma universidade norte-americana, passa um ano, e depois volta para ser candidato de não sei o quê. Isso também não é algo claro. Saiu muito barato para Moro, porque ninguém vai fazer o balanço do que ele realmente fez no Ministério da Justiça, que é nada. Ele sai sem se comprometer com as mortes, de mãos dadas com Mandetta. O fato de passar 40 minutos falando minúcias mostra que está aproveitando o tempo que tem a disposição, assim como ficar respondendo Bolsonaro nas redes. Quanto mais falarem dele, mais ele pode voltar de maneira triunfal. Ao mesmo tempo, sua saída não se dá sem prejuízos.
P. O que perde deixando o cargo?
R. O que vale para Mandetta vale para Moro. Tem uma parte do Moro que ele também devia a Bolsonaro. E que ele vai perder. Não porque são apoiadores de Bolsonaro, mas porque vão identificá-lo com Bolsonaro. Ele terá que se tornar uma figura pública que não tenha por trás de si nem a magistratura nem o Governo. Quando você tem uma estrutura por trás, é mais fácil. Mas agora ele precisa ser relevante sem ter ninguém por trás. Se sai candidato a senador, é outra lógica. Mas para se candidatar a presidente, primeiro tem que provar que consegue se sustentar sozinho na esfera pública. Luciano Huck, que é uma figura midiática, não consegue se tornar um líder político. E Moro não é Mandetta, que é do ramo, pertence ao DEM, já foi deputado… Moro fala muito bem da Lava Jato, mas uma figura pública tem que falar de habitação, de saúde, de economia… É muito diferente. Acho que ele tem muitas limitações.
FELIPE BETIM “EL PAÍS ( ESPANHA / BRASIL)