Hoje não vou escrever sobre a questão de gênero, embora o aumento da violência doméstica e dos casos de feminicídio neste momento nos deixe em alerta máximo e mereça total atenção. No entanto, temos hoje um problema que suplanta qualquer outro, porque dele brotam fatos mais monstruosos do que os vários já existentes. Temos como problema central, além da pandemia que mata centenas por dia no Brasil e milhares no mundo, um presidente da República que incentiva as pessoas a irem para a rua normalmente, em um momento em que sair de casa pode significar a morte. Como se isso já não bastasse, o mesmo presidente da República sai de casa, se junta a manifestantes – em um momento em que a não aglomeração é uma orientação científica e mundial – que clamam pela volta da ditadura, do AI-5, de uma intervenção militar, com discurso inflamado, muita tosse, e uma declaração incompatível com o Estado Democrático de Direito: “Não queremos negociar nada”.
A pergunta que muitos têm feito é: até onde deixaremos esse homem ir? Até onde permitiremos que as bravatas proferidas por ele se normalizem? Vale lembrar que, antes de chegar ao Planalto, esse mesmo homem fez apologia da tortura não só em entrevistas, mas também em alto e bom som na casa legislativa brasileira, quando votou pelo impeachment de Dilma Rousseff invocando o nome de um dos mais sangrentos torturadores que a ditadura militar do Brasil teve. Naquele mesmo dia, a indignação mais incisiva veio do então deputado federal Jean Wyllys – que abriria mão do mandato na eleição seguinte, devido às ameaças de morte dirigidas a ele e à sua família – que cuspiu em direção ao parlamentar do chamado “baixo clero” que exaltou o torturador. Alvo de processo no Conselho de Ética da Câmara, Wyllys foi formalmente advertido. E com o então deputado que exaltou o torturador, o que aconteceu? Alguém se lembra? Nada.
Durante a campanha à presidência, esse mesmo homem, em um comício, fez um gesto de fuzilamento e discursou: “Vamos fuzilar a petralhada!” O que aconteceu com ele? Alguém se lembra? Foi eleito.
Não vou nem mesmo citar, neste artigo, muitas outras declarações agressivas e ameaçadoras feitas por esse mesmo homem após chegar ao Planalto. Este texto vai se ater a uma única: em março deste ano, em viagem aos Estados Unidos, o já presidente afirmou – veja bem: afirmou, não insinuou – que a eleição de 2018 havia sido fraudada; que ele teria vencido o pleito em primeiro turno. E mais: que tinha provas da referida fraude. Apesar das constantes cobranças de jornalistas e políticos, jamais apresentou as tais provas. Jamais. O que aconteceu? Nada.
E agora, em plena pandemia, contrariando todas as recomendações médicas e científicas, esse mesmo homem, que se cobre do poder que lhe é concedido pelo cargo que ocupa, inflama a população do país que governa a ir para a rua, a trabalhar normalmente, a se aglomerar em manifestações contra o isolamento social, a correr o risco de transmitir o vírus do qual todos devemos nos proteger, a caminhar em direção à morte. Não seria genocídio provocar a morte de uma grande parcela da população? E o que acontece com esse homem? Nada.
É a normalização do absurdo. É a normalização de atos que historicamente foram considerados sub-reptícios. É a normalização de atitudes historicamente classificadas como inaceitáveis. Em todos os fatos e declarações citadas neste texto há a incitação à violência, ao ódio, à agressão. Ao crime. Ou alguém aqui esqueceu que tortura é crime contra a humanidade? Até quando ficaremos quietos enquanto esse homem dissemina o absurdo? Até quando ficaremos calados enquanto esse homem coloca em risco vidas humanas e o Estado Democrático de Direito?
Até onde deixaremos Jair Bolsonaro ir? Na minha avaliação, não falta mais nada para que medidas institucionais sejam tomadas em prol da nossa existência, que é incompatível com as atitudes desse homem. Alguém discorda?
LÍDICE LEÃO ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)
Lídice Leão é jornalista e mestranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo.