O ex-ministro da Saúde, Henrique Mandetta, fez um trabalho heroico de conscientização da população brasileira sobre os riscos da pandemia do novo coronavírus (Covid-19). Em um país de 211 milhões de habitantes, dimensões continentais e pobre em recursos financeiros, educacionais, culturais, de saneamento e saúde, deixar o cargo com 35 mil casos registrados e cerca de 3.300 mortes é até uma façanha. Com o capitão do time fazendo gols contra, pênaltis e faltas perigosas na entrada da área, comemorados nas redes sociais por seus ‘hooligans’ fanáticos, Mandetta agiu como o menino holandês cujo dedinho no furo retardou o rompimento do dique, contando com o apoio da mídia e convenceu boa parte da população a ficar em casa e evitar a contaminação exponencial do contágio, como na Europa e Estados Unidos.
Mas, verdade seja dita: se em várias áreas do Brasil há carência crônica de informações sobre a pobreza e a falta de assistência de serviços básicos aos mais pobres, na Saúde os óbices afloram de forma mais gritante numa crise como a da Covid-19, cujas consequências econômicas são inéditas em todo o mundo. A China, mesmo mascarando o impacto real dos números do novo vírus e trancando em casa populações inteiras de províncias, teve contração de 6,8% no 1º trimestre, o maior tombo em 18 anos. Nos EUA, com 329 milhões de habitantes, em quatro semanas, mais de 22 milhões perderam os empregos e foram bater às portas do seguro governamental de emergência.
No Brasil, de 211 milhões de habitantes, os números da economia são muito incertos e, certamente, vão agravar os problemas da Saúde se a recessão causar desligamento em massa de trabalhadores com carteira assinada que tinham planos de saúde suplementar. Até janeiro, 47 milhões de brasileiros tinham cobertura de planos de saúde (privilégio basicamente de quem é funcionário público ou tem carteira assinada, pois os planos individuais mal chegam a 10%). Se desse universo, dois a cinco milhões perderem emprego (mesmo considerando que o número de informais é tão grande quanto os regulados pela CLT), haverá uma forte migração para o Sistema Único de Saúde (vulgo SUS), já sobrecarregado pela pandemia do Covid-19. Isso se o novo remédio da hora, o nitazoxanida, vulgo anita, não surtir efeito, como apregoado pelo astronauta Marcos Pontes.
De certa forma, tem razão o novo ministro da Saúde, o oncologista e gestor de programas privados de saúde, Nélson Teich, quando disse que é preciso ampliar as informações para se estabelecer um plano de ação à pandemia (com isolamento ou distensão, como exige Bolsonaro). O brasileiro ameaçado pela Covid-19 não mora na União nem no estado. Mas em um dos 5.570 municípios do país, no bairro, comunidade, rua, casa ou porta ao seu lado. Se o governo federal não se unir aos governos estaduais e municipais num combate articulado, não haverá qualquer plano de ação para enfrentar o inimigo microscópico. Nunca se saberá se esta ou aquela região está mais ou menos suscetível à transmissão comunitária ou apta a abrir. Aí mora o grande problema, como fica claro nas recentes estatísticas de contágio e mortes.
A lógica é de que os estados mais populosos entre os 27, incluindo o DF, tenham mais pessoas contagiadas e mais baixas. São Paulo, com 46,3 milhões de habitantes tinha ontem mais de 13 mil casos registrados e mais de 1 mil mortes. O Rio de Janeiro, com 17,3 milhões, registrava 4.500 casos e mais de 350 mortes. Estranhamente, Minas Gerais, com 21 milhões de habitantes, tinha menos de 1.000 registros e só 35 mortes. Mesmo levando-se em conta a característica mais retraída e menos festeira dos mineiros, deve estar havendo subnotificação em seus 853 municípios. Salvo raras exceções, a suspeita se espalha em todo o país, por falta de testes sequer para garantir se o pessoal da linha de frente da saúde está imunizado e pela desarticulação das secretarias de saúde nos estados.
Nas secretarias estaduais, que reportam os casos ao Ministério da Saúde, carecem os testes, testes e testes, máscaras, uniformes, protetores e leitos de enfermaria ou UTI com respiradores para atender os casos mais graves. Informações precisam estar online 24 horas por dia, sete dias por semana para as secretarias estaduais transmitirem ao MS. Em respeito aos paramédicos que arriscam a própria vida, não tem sentido não haver escala de plantão para a organização do envio dos dados em fins de semana e feriados. A partir das 17 horas de sexta-feira, a maior parte dos gestores municipais encerra o expediente e retoma na segunda. Por isso, os casos caem nos fins de semana e disparam na terça-feira. Esta semana, com feriados dia 21 e meio experiente dia 23 (Consciência Negra), vai-se tatear ainda mais no escuro quando a epidemia entrar em período de pico.
Tirando o caso extremo do Amazonas (com 4,2 milhões de habitantes tinha pouco menos de 2.000 infectados e cerca de 150 mortes até ontem – mais de 90% concentradas em Manaus), vinha estranhando que a Bahia, o 4º estado mais populoso do país (14,9 milhões de habitantes, segundo o IBGE), tivesse baixos registros, apesar da efervescência de seu Carnaval – fator de proliferação da pandemia em Fortaleza e Recife, outros estados que, como o Rio de Janeiro, recebem turistas de todo o mundo nas folias de Momo.
As últimas estatísticas já põem ordem natural nas coisas (com exceção do AM e MG). São Paulo e RJ lideram os casos e mortes. O Ceará (9,3 milhões de h.) vem em 3º em casos (2.700) e 4º em mortes (mais de 150). Pernambuco (9,5 milhões de h.) surge em 4º nas contaminações e assume o 3º posto em mortes (190). A Bahia tem até agora pouco mais de 1.000 casos e 40 mortes. Se o consumo de dendê não combater o vírus, parece claro haver subnotificação…
O Brasil tinha em abril de 2019 pouco menos de 500 mil leitos de saúde. Segundo levantamento do Departamento Econômico do Bradesco, que controla 100% da Bradesco Saúde, maior operadora de planos do país, 330 mil eram em hospitais públicos ou vinculados ao SUS e 164 mil em hospitais particulares e não-SUS. Em 2008, éramos 192 milhões de brasileiros e havia 507 mil leitos, com média per capita bem maior. De 2008 até abril de 2019 houve redução de 35 mil leitos na rede do SUS e aumento de 23 mil fora-SUS. Enquanto a população aumentava em 20 milhões (com aumento da fatia dos idosos) os leitos hospitalares encolheram em 12 mil unidades.
Dá para entender por que os hospitais de campanha estão se multiplicando, país afora. Não houve acompanhamento nos últimos 12 anos em relação ao aumento da população e da mudança na composição etária da população. Se nascem menos crianças e aumenta o número proporcional de idosos, temos de desviar recursos dos berçários para UTIS. Menos obstetras e pediatras e mais geriatras e especialistas em doenças da terceira idade. No meio do caminho, há um país de pessoas em crescente obesidade e com doenças cardiovasculares, asma ou diabetes, agravantes gravíssimas na Covid-19.
Outro dado impressionante no levantamento do Bradesco é o aumento das clínicas e consultórios no país. Crescem os especialistas e rareiam as formações de clínicos gerais. Assim, as consultas se multiplicam e oneram ainda mais os planos com exames laboratoriais e tomografias e exames caros, fora do alcance dos milhões de brasileiros que dependem das UPAs, Postos da Saúde da Família, hospitais municipais e estaduais. Nelson Teich veio de um mundo sofisticado na medicina empresarial. O buraco do SUS é bem mais embaixo. Tomara que consiga estabelecer o cruzamento de dados dentro do sistema de saúde público e privado brasileiro e que, assim, esteja preparado quando a onda de desempregados, que foi à Caixa, bater às portas do SUS.
Os danos da Covid-19 parecem estar atingindo países periféricos que ganharam dinamismo em suas economias e sociedades com a integração das cadeias produtivas na globalização, iniciada com a inserção da China no processo. Países que, como a China pagavam pouco à mão de obra absorveram cadeias produtivas de grandes multinacionais em todos os setores industriais. A Apple concentrou sua produção na China (o cérebro ficou em Palo Alto, na Califórnia). O Japão transferiu boa parte da sua indústria têxtil para a China e ‘tigrinhos’ asiáticos. E por aí vai.
Agora, na ressaca da Covid-19 surgem baixas por todo o lado. Uma vítima é Bangladesh. O país que ficou independente da Índia e ficou conhecido pelos concertos do beatle George Harrison para levantar fundos contra a pobreza nos anos 70, vinha sendo uma potência na indústria têxtil e de confecção. Encomendas de gigantes do prêt-à-porter, como a espanhola Zara, que para lá transferiu suas linhas de produção (assim como outras fizeram para a Malásia, Tailândia, Laos, Vietnã, Indonésia e Filipinas) ajudaram a gerar empregos no país de 167 milhões de habitantes (9ª população do mundo). Com o movimento de retorno das linhas de produção ao país matriz (iniciado pelo Japão), seria preciso que o saudoso George voltasse a mobilizar multidões desempregadas.
Desempregados de todo o mundo, uni-vos.
GILBERTO MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)