O monstro, em vez da disciplina das instituições, passou a ser conduzido pelo boi-guia, aquele que fica na frente da manada liderando o estouro. E a função de boi guia entregue ao mais despreparado e desequilibrado presidente da República da história.
O primeiro passo é identificar os personagens do jogo, que podem ser divididos em dois grupos: os protagonistas políticos e os poderes-sombra disputando o controle da opinião pública.
Peça 1 – o monstro opinião pública
A peça principal a ser conquistada é a opinião pública. Desde a consolidação da comunicação de massa, ainda no século 19, é o monstro irracional, que se move de acordo com instintos primários, de sobrevivência econômica ou de manutenção de status social. Por isso, será tratada neste artigo como o monstro.
A maneira que as democracias encontraram para domar o monstro foi através dos mecanismos institucionais da democracia representativa, os Três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – e a mídia, como quarto poder, sendo supostamente os representantes da opinião pública.
Nas democracias ocidentais, os grupos de mídia se tornaram os mais influentes agentes políticos do século 20, mais que as religiões, os partidos políticos e os sindicatos. E a informação de massa foi elemento central para, nos pós-guerra, domar e conduzir o monstro de acordo com seus propósitos ideológicos e comerciais.
O monstro foi mantido sob controle com os seguintes recursos amenizadores de pressão social:
* A inclusão política, lenta, gradual e sob controle, das diversas minorias.
* Alternância política entre partidos orbitando em torno do centro, da social democracia ao neoliberalismo. No caso brasileiro, a socialdemocracia passou a ser representada pelo PT, que conseguiu canalizar para o jogo político as demandas de movimentos sociais organizados. E o mercado, pelo PSDB durante algum tempo temperando suas demandas com o padrão social tipo Ruth Cardoso.
* O Supremo Tribunal Federal (STF) vendendo a ideia de agente neutralizador de tentativas de um poder avançar sobre o outro.
* Outros poderes, como o finado Ministério Público Federal e a vibrante Advocacia Pública assumindo o papel de defensores dos direitos difusos da sociedade.
* A imprensa, organizando o discurso político com viés altamente pró-mercado, mas, de qualquer modo, se tornando um balizador das discussões, mantendo sob controle as expectativas do monstro. Isso pelo menos até o infausto ano de 2005, quando passou recorrer ao jornalismo de guerra, versão impressa do direito penal do inimigo.
Aí houve o esgotamento do modelo político. O PT perdeu gradativamente o dinamismo que demonstrou no período da crise de 2008, mas a aliança PSDB-mídia-mercado não logrou se apresentar como alternativa. Decidiu-se, então, recorrer ao monstro, já meio desperto depois das gritarias de 2013. E tirou-se da gaveta a velha bandeira da anticorrupção seletiva.
A luta anticorrupção foi transformada em instrumento ideológico, tendo como objetivo explícito afastar o PT do jogo político e revogar a Constituição de 1988. Isso estava nítido no ativismo judiciário pregado anteriormente pelo Ministro Luis Roberto Barroso e, depois, já na fase Lava Jato, nas catilinárias contra a legislação trabalhista e em defesa do “estado enxuto”. E ficou mais nítido no envolvimento direto de procuradores e do então juiz Sérgio Moro no processo eleitoral de 2018.
O processo de desmonte das políticas sociais e do SUS , foi aprofundado no interregno corrupto de Michel Temer e, depois, na era Guedes-Bolsonaro.Leia também: Bloqueio de coronavírus: lições da segunda onda de infecções de Hokkaido
Finalmente, permitiu-se a quebra do princípio democrático básico da alternância política, com a exclusão arbitrária do PT do jogo político, liquidando de vez com a presunção de isenção do Judiciário e do STF.
O discurso da Lava Jato não era o da necessidade de aprimoramento das regras do jogo, mas o da desmoralização ampla da política, a venda da ideia do “país mais corrupto do planeta”, e o maneirismo indecoroso de Luis Roberto Barroso, anunciando a novo Iluminismo do final do arco íris.
As invectivas de Barroso conseguiram a dupla desmoralização tanta da política quanto da imagem do Supremo, como agente moderador. A partir daí, a jaula estava aberta. E o monstro, em vez da disciplina das instituições, passou a ser conduzido pelo boi-guia, aquele que fica na frente da manada liderando o estouro. E a função de boi guia entregue ao mais despreparado e desequilibrado presidente da República da história.
Peça 2 – os personagens do novo jogo político
Agora, com a era Bolsonaro e a eclosão do coronavirus, a polarização política mudou. Em vez de esquerda vs direita, virou civilização vs barbárie. Há um realinhamento de todos os personagens políticos em torno da nova disputa.
Do lado da barbárie, alinham-se obviamente Bolsonaro e seus radicais. Do lado da civilização, um aglomerado, com contornos ainda pouco nítidos, mas composto dos seguintes personagens:
Atores políticos – à esquerda, o espaço dominado pelo PT; à direita, um certo predomínio do DEM, devido ao fenômeno Mandetta. E uma disputa surda entre centro-esquerda e centro-direita tentando montar o arco de alianças do centro, todos convergindo para uma série de princípios comuns, que podem ser meramente retóricos:
* defesa do social;
* defesa do aprofundamento da democracia;
* defesa da diversidade de opiniões.
O coronavirus consolidará outros alinhamentos:
* a volta do conceito de segurança nacional para temas como energia, saúde e alimentação.
* a volta das políticas industriais analisadas sob a ótica da segurança nacional (em sentido amplo, não no sentido estrito da guerra fria).Leia também: Urubus no Equador, epicentro do horror do coronavírus na América Latina
Mas divergindo ainda sobre as questões econômicas.
A superestrutura – acima dos atores políticos, dois personagens centrais de influência, desde eras imemoriais: o mercado (tendo a mídia como grande porta-voz) e os militares, que voltaram à cena com o espaço aberto gradativamente pelos governos Temer e Bolsonaro.
Nas eleições de 2018, um mero Twitter do general Villas Boas condicionou o comportamento do STF, comprovando o grau de desmoralização das instituições civis. A montagem, pelo vice-presidente Hamilton Mourão, do Conselho da Amazônia integrado apenas por coronéis é o último exemplo de uma velha máxima: sempre que se abre espaço político ou na administração civil para os militares, a volta aos quartéis é complicada.
Peça 3 – como será a guerra política
Agora, o coronavirus entrou como tema central da guerra política. Há uma enorme discussão sobre se Bolsonaro é burro ou não é, se é louco ou psicopata. O que importa é sua estratégia, em tudo similar à de Donald Trump, sugerindo, por trás dessa sincronização, uma coordenação maior, feita pela ultradireita mundial, provavelmente organizada por Steve Bannon.
Nos EUA, como aqui, foram planejadas carreatas no mesmo dia, financiadas por empresários – no caso dos EUA, pelos indefectíveis irmãos Kock, conforme reportagem do The Guardian -, estimuladas, por Twitter, pelos presidentes da República e em cima da mesma bandeira: fim do confinamento e abertura já.
A lógica já foi adiantada aqui em outro Xadrez:
- A pandemia vai vitimar muitas pessoas. Mas, passada a pandemia, o tema central será a desorganização da economia e a explosão do desemprego.
- Levantando, agora, a bandeira da economia, mais à frente Trump (e Bolsonaro) tentará faturar em cima do fantasma que remanesce, o desemprego.
- Em qualquer circunstância, poderá atribuir a crise econômica, e mesmo a sanitária, aos governadores de Estado que assumiram o protagonismo na guerra contra o coronavirus.
Se a narrativa vai pegar ou não, são outros quinhentos. Mas dela dependerá o futuro do jogo político que se desenha no pós-pandemia. A intenção de Bolsonaro é manter coesa sua base de apoio – estimada entre 15 a 25% da população (o que é muito) -, e contar com a desinformação proporcionada pelas redes sociais.
Mesmo assim, não se menospreze a capacidade de Bolsonaro de continuar ampliando os conflitos políticos. À medida em que se isola politicamente, sua reação padrão é ampliar a radicalização, contando com a adesão de seguidores fanatizados.
Peça 4 – o posicionamento atual
É inegável que, para qualquer ser pensante, Bolsonaro tornou-se uma ameaça sanitária gigantesca. Seu estímulo ao fim do isolamento, o boicote às políticas do Ministério da Saúde, terão como consequência aumento da morte de pessoas.Leia também: Coronavírus: Semelhanças e diferenças entre Doria e Cuomo
Mesmo assim, não há consenso sobre o impeachment.
De um lado, pela fragilização das instituições, o principal legado do período Lava Jato. De outro, pela falta de consenso do arco ampliado das oposições a Bolsonaro. Principalmente, pelo esgotamento geral produzido pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Os esforços por um pacto amplo estão sendo superados pela tentativa dos diversos grupos em lançar seus candidatos a 2022.
Mercado-mídia se articulam em torno de Luciano Huck, temperando seu discurso com pitadas de preocupação social. O DEM tentará lançar Luiz Henrique Mandetta. Como maior partido nacional, o PT não parece disposto a abrir mão da liderança do processo de reação das esquerdas.
Fora desse espectro tradicional, há apostas em novas lideranças que tentam se articular pelo centro. Do lado esquerdo, o governador do Maranhão Flávio Dino; pela direita o repaginado governador de São Paulo João Dória Jr. Correndo por fora o eterno Ciro Gomes tão competente em diagnósticos econômicos quanto desastrado em estratégias políticas.
Mas não há, à vista, a figura do grande agregador, a liderança moral acima dos partidos e das instituições, capaz de avalizar o grande pacto. Pela esquerda, o antipetismo tirou Lula do jogo; e tirou também quem poderia ser a liderança do centro-direita, o inexpressivo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O Supremo é um cristal partido. No Congresso, há a figura de Rodrigo Maia, que tem se saído bem em seu papel moderador. Mas apenas isso.
Em todo caso, há experiências interessante de cooperação, no Consórcio do Nordeste e no pacto de governadores, capazes de criar um espaço de negociação.
Mas tudo ainda é muito incipiente.
Esta manhã, ao apoiar manifestações em frente o quartel e declarar que não haverá mais negociação, e que o Congresso terá que se curvar à força do povo, Bolsonaro faz sua maior aposta. É possível que o gesto acelere o pacto social para retirá-lo da presidência.
LUIS NASSIF “JORNAL GGN” ( BRASIL)