CARNAVAL: O INCONSCIENTE DA POLÍTICA NA RUA

CHARGE DE MIGUEL PAIVA

O que estava em estado de recalque vem para rua no carnaval. Sim, carne vale. O povo que não saiu para as ruas contra os ataques racistas, misóginos, moralistas e hipócritas, homofóbicos, vai para rua colocando sua revolta dia e noite sem parar. Sambando seminu denuncia com humor, ironia, irreverência e arte a necropolítica do atual governo falsamente cristão, falsamente honesto, falsamente legal e moral que se instalou no alto comando de nosso país.

As Escolas de Samba, as fantasias e maquiagens, as paródias das marchinhas colocam o povo para cantar em alto e bom tom as verdades recalcadas. E os corpos que vem sendo submetidos a uma retórica retrógrada cada vez mais opressiva e conservadora se soltam, dançam, pulam, se despem, se abraçam, se beijam guiados pelo desejo inconsciente e pelas pulsões.

O Inconsciente sexual vaza por todos os poros desses corpos molhados de suor e gozo, chuva e cerveja. A política do Inconsciente se manifesta no carnaval e vai de encontro com a política da Ministra da repressão sexual. Momento de trans-formações: novos personagens, novos sexos, novos atos, novo comportamento no coletivo. Vira rei, rainha, bicho, troca de sexo, enfeita-se, se mascara-se e brinca muito.

A carnavalização e sua irreverência faz parte de nosso patrimônio cultural miscigenado e antropofágico da cultura dos invasores (e não descobridores, aprendemos no carnaval passado). Essa forma de fazer política coloca nos corpos, nas vozes e na rua, uma retórica da oposição denunciando a impostura e derrubando mitos de barro. Fantasiados de empregadinha da Disney como deboche ao discurso do Ministro da Economia e sua política econômica foliões dançam nas ruas.

A Escola de Vigário Geral em seu último carro alegórico a desfilar erigiu um imenso boneco do palhaço Bozo com a faixa presidencial fazendo arminha com a mão, marca coreográfica que desde a campanha já dizia a que viria, 2 “para já ir se acostumando”. Só pra lembrar aos eleitores a violência de todo santo dia, que vem do plano-alto deste “país abençoado por Deus”.

A Mangueira mais uma vez veio com toda sua força artística e política para despertar e sacudir a população. “Não tem Messias com arma na mão”.

A Mangueira ousa avançar num tema cristão o que permite a retificação do fundamento religioso: Jesus está “no rosto negro, no corpo índio e no corpo de mulher” – esses que tem sido visados, entre outros, na retórica atual – está aí sua força revolucionária. “Favela, pega a visão; Não tem futuro sem partilha.” Ao dar voz a Jesus o povo pode escutar de que lado está: “Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira. Me encontro no amor que não encontra fronteira”.

Declarando-se a favor da diversidade sexual acrescenta também um chamado para a luta: “Procura por mim nas fileiras contra a opressão”. Não é hora de covardia: “Mas será que todo povo entendeu o meu recado? Porque, de novo, cravejaram o meu corpo”. Marielle, sim, pode ter sido uma encarnação de Jesus (para usar o vocabulário da mitologia cristã) da mesma forma que os incontáveis negros jovens assassinados nas favelas.

A Mangueira é um paradigma da força propriamente política do carnaval. Isto por ser uma manifestação múltipla e heterogênea do Inconsciente de uma coletividade que retoma a história, a realidade reprimida e coloca o desejo em cena fazendo-nos sonhar com a transformação da realidade. Essa força está também em maior ou menor grau em todas as Escolas de Samba e também nos blocos e manifestações na rua, como também nos clássicos do carnaval.

Nesses dias de folia, assistimos a mudança dos afetos: o medo é substituído pela alegria, o ódio pela simpatia, o desânimo pelo entusiasmo, a prostração pelo destemor. São ingredientes transformadores e revolucionários. Está presente a força do coletivo que convoca ao agrupamento, ao cortejo e à festa.

O carnaval é sempre um carnamício. O sujeito do coletivo nos diz Freud é o mesmo sujeito do individual. É nesse período de intervalo, parêntese em que está suspenso o cotidiano normatizante que se manifesta o ritual totêmico em que os filhos celebram a morte do pai tirânico e sua libertação da escravidão.

No mito freudiano de Totem e Tabu, Freud faz a genealogia mítica da sociedade na qual, na pré-história, existia um pai, líder que reinava escravizando todos e abusando sexualmente de todas. Um dia, os filhos se juntaram e mataram o pai “tiranossauro” que os dominava.

Em seguida erigiram um totem elegendo um animal que o simbolizava e assim instauram a Lei simbólica que ordena os laços sociais e regula os gozos para que as pessoas possam conviver umas com as outras. Mas de tempos em tempos a comunidade se reúne e celebra numa festa, como o carnaval, a refeição totêmica matando o animal e relembrando o fim da tirania, libertando-se do medo, do pavor e da covardia. A cada ano se mata um tirano.

A ironia e o sarcasmo como armas do humor apropriadas para furar o Outro do poder vêm com força nas paródias políticas das antigas marchinhas que debocham das fake news utilizadas nas últimas eleições: “Mamãe eu quero, mamãe eu quero votar, dá 3 mamadeira, a de p..oca, e zap zap pra qu’eu possa estudar”.

Fazem refletir de forma irreverente sobre o voto: “Ó paneleiro porque estás tão triste, o que foi que te aconteceu? Trocou o Temer pelo Bolsonaro e se arrependeu”.

Retomam de forma rimada o “Ele não”: “Taí, fiz tudo pra você não estar aí, oh meu Deus eu não queria isso não, você tem, você tem que pedir a demissão”.

E pedem justiça contra o Ministro da injustiça: “Quem sabe, sabe lá vem o Glenn trazendo os áudios sobre o Kuém-kuém”. E ainda mostra as consequências da reforma da previdência: “Vai, vai trabalhando, o velhinho de muletas se arrastando, vai vai trabalhando e com a velhice vai se beneficiando; o velho só levando no lombo e a previdência estão roubando; a turminha de milicos se aposenta na maior e o povo a labutar como sempre na pior”.

Além disso, denuncia com humor e arte a série de corrupção envolvendo membros do governo com as investigações paradas: “Yes, nós temos laranja, e o Bozo tentando esconder, laranja, propina e cocaína, laranja pro Brasil crescer”.

Este carnaval com suas manifestações do retorno do recalcado e a força de sua arte e verve é um chamado ao combate ao neofascismo que hoje nos ameaça com sua “tiranóia”.

Vamos ver se isto tudo não acaba em cinzas no dia seguinte da terça-feira gorda e prenhe de coragem e esperança.

Que a potência, a ousadia e a irreverência se prolonguem adiante extraindo do carnaval sua sabedoria, o retorno da verdade recalcada e do desejo de transformação como guia. E que o despertar das massas em sua folia traga o ensinamento de como eleger governantes que não sejam “profetas da intolerância”.

ANTÔNIO QUINET ” BLOG 247″ ( BRASIL)

Psicanalista, dramaturgo, autor de “O Inconsciente teatral” pela Cia. Inconsciente em Cena, pela Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e pelo Coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia

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