Nunca ganhou um Óscar mas conquistou o respeito de Hollywood por praticar as suas convicções. O DN volta a publicar o texto foi originalmente publicado em dezembro de 2016 por ocasião do centenário do ator que agora morreu, aos 103 anos.
á dez anos, fazendo passar um sinal exterior de atividade e lucidez, Kirk Douglas utilizou a internet para uma mensagem especial. Onde podia ler-se isto: “O 90.º aniversário é especial. No meu caso particular, é um milagre. Eu sobrevivi à II Guerra Mundial, à queda de um helicóptero, a uma trombose e a dois joelhos novos. Desta vez decidi fazer um brinde ao mundo. Sejamos claros: o mundo está um caos (…) e aqueles que o vão herdar terão de enfrentar muitos problemas: a pobreza abjeta, o aquecimento global, os genocídios, a sida e os bombistas suicidas, para citar apenas alguns. Tudo isto existe, mas o mundo mantém-se silencioso. Nós fizemos muito pouco para resolver estas questões. Agora passamo-los adiante e vocês, os mais novos, vão ser obrigados a tratar do assunto porque a situação é intolerável. Têm de se revoltar, dizer em voz alta o que pensam, escrever, votar e tomar conta das pessoas e do mundo em que vão viver”.
Não se sabe se o ator – cuja “boa forma” foi há dias confirmada pelo filho mais velho, o também ator e produtor Michael Douglas – vai insistir nos recados. Se o fizer, o teor das recomendações não poderá ser essencialmente diferente – poderá, quando muito, acrescentar o problema Trump, com que talvez Kirk, um democrata de sempre, talvez não contasse. É um dos efeitos secundários ligados à espantosa longevidade deste filho de um casal de russos, Jacob e Bryna, chegado aos Estados Unidos em 1912, que soube “mudar” o nome de Issur Danielovich para Kirk Douglas, à custa de trabalho e talento: ele já viu de tudo e nunca se calou. Em 2013, ainda fazia apelo público para a necessidade de mais controle das armas nos EUA.
A carreira começou há 70 anos (1946), quando depois de uma insistência da sua amiga Lauren Bacall, o homem que serviu na Marinha norte-americana na II Guerra Mundial, se estreou no filme O Estranho Amor de Martha Ivers. Conhecido pelo seu feitio difícil, pouco predisposto a cedências (basta referir o que se passou antes das filmagens do primeiro Rambo, em que a personagem de Stallone devia, de acordo com o livro, morrer às suas mãos, e Douglas se afastou quando os produtores se decidiram pela sobrevivência do “herói” para poderem prolongar a saga), Kirk Douglas participou em 73 longas-metragens, a que se soma dúzia e meia de colaborações na TV, em séries ou filmes. Ainda assim, foram poucos os realizadores que repetiram a experiência de o convocar para os seus elencos: Joseph L. Mankiwicz (com 21 anos de intervalo entre Carta a Três Mulheres e O Réptil, Vincente Minnelli, com quem fez três filmes, Richard Fleischer, John Sturges, Stanley Kubrick, numa relação que cruzava respeito profissional com um profundo ódio pessoal, Brian De Palma e, numa fase já avançada, Jeff Kanew.
No entanto, Douglas espalhou o seu currículo por mãos sábias, figurando entre os notáveis que dirigiram os nomes de Jacques Tourneur, Mark Robson, Michael Curtiz, Raoul Walsh, Billy Wilder, William Wyler, Howard Hawks, Edward Dmytryk, Anatole Litvak, Henry Hathaway, King Vidor, Robert Aldrich, John Huston, John Frankenheimer, Otto Preminger, Anthony Mann, René Clement, Martin Ritt, Stanley Donen e até George Miller (inventor de Mad Max). Tivesse havido um John Ford pelo meio e, face a uma época e a um segmento dominante, estaríamos perante o percurso sem faltas.
Sem Óscar mas com medalha
Nomeado por três vezes na corrida ao Óscar de melhor ator – por O Grande Ídolo, Cativos do Mal e A Vida Apaixonante de Van Gogh, filmes lançados entre 1949 e 1956 -, Douglas reconheceria que os seus piores momentos na gestão do percurso terão coincidido com as recusas dos papéis entregues a William Holden em Inferno na Terra e a Lee Marvin em A Mulher Felina, ambos passaportes para a desejada estatueta atribuída pela Academia. Não deixou, ainda assim, de receber algumas recompensas, com destaque para a Presidential Medal of Freedom (a mais alta distinção norte-americana para um civil), que lhe foi atribuída pelo presidente Jimmy Carter. Há uma outra “distinção” de que muito se orgulha: a da sua contribuição para furar a “lista negra” que a “caça às bruxas” do senador McCarthy estendeu sobre Hollywood. Na verdade, não só Douglas fez finca-pé na presença do proscrito Donald Trumbo entre os argumentistas de Spartacus, o épico que ditou a incompatibilidade irresolúvel entre Kirk e Kubrick, como exigiu que o principal autor do guião aparecesse na ficha com o nome verdadeiro.
Kirk Douglas andou “fardado” grande parte do tempo que passou nos cenários de filmagem: fosse com as vestimentas de um cowboy (como as de Duelo de Fogo, em que vestiu a pele de Doc Holiday, ou as de O Último Comboio de Gun Hill) ou com o uniforme de outras guerras (casos de Horizontes de Glória, A Primeira Vitória ou Paris já Está a Arder?, entre muitos outros). Mesmo sem as pistolas ou as metralhadoras, parecia indisponível para parar de lutar, assumindo por norma personagens maquiavélicas ou, no mínimo, perturbadas. Quem vê não esquece o seu olhar feroz e a sua voz cortante. Quanto ao feitio, não deixou de se explicar: “A virtude não é fotogénica. O que é ser um gajo porreiro? Nada de nada. É ser um enorme zero, com um sorriso para toda a gente. E eu fiz a minha carreira a representar filhos da mãe.” Filmou lado a lado com Burt Lancaster por sete vezes, mas não eram amigos – respeitavam-se apenas. Como se depreende do desabafo, depois da rodagem de Os Duros (1986): “Livrei-me finalmente do Burt Lancaster. A minha sorte mudou para melhor. Agora, tenho miúdas mais giras nos meus filmes…”
Douglas é casado pela segunda vez, e o segundo matrimónio dura há 62 anos e meio. Tem quatro filhos, que nunca desamparou. A Michael, o mais velho, ajudou imenso, com destaque para a oferta dos direitos de Voando sobre Um Ninho de Cucos, peça que o próprio Kirk representou na Broadway, em 1963. Esse presente permitiu a Michael Douglas começar o seu trajeto de produtor com cinco Óscares na bagagem. Retenha-se esta ideia do decano dos Douglas: “Eu tive uma enorme vantagem sobre os meus filhos – nasci no meio da pobreza total.” Talvez tenha razão, o velho patriarca, duro nas salas de cinema, convicto na vida.
Publicado originalmente a 9 de dezembro de 2016
JOÃO GOBERN” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)
O ATOR QUE PARECIA DERROTAR O TEMPO E O ESPAÇO
Parecia que Kirk Douglas derrotaria o tempo e o espaço. Que ele continuaria servindo por anos sem fim. Um século, 101, 102, 103 anos… E ele continuará a completá-los, porque ninguém derrotará a lenda, mas na quarta-feira ele morreu em sua casa em Beverly Hills (Califórnia). Issur Danielovitch Demsky, filho de imigrantes nascido na cidade Amsterdam, no Estado de Nova York, em 9 de dezembro de 1916. Morreu Issur, porque Kirk hoje é imortal. A notícia foi confirmada pela família por intermédio de seu filho Michael Douglas: “Para o mundo, é uma lenda, um ator da era de ouro do cinema, um filantropo comprometido com a justiça e as causas em que acreditava, mas para mim, para Joel e para Peter, era simplesmente papai”.
Ficam Midge, de O Invencível, Chuck Tatum, de A Montanha dos Sete Abutres, Johathan, de Assim Estava Escrito, Jack de Sua Última Façanha… Ficam os gritos de “Sou Spartacus”, o lançamento de machados para tomar a fortaleza dos vikings, o som e a fúria de seu exército em Glória Feita de Sangue, seu Van Gogh de Sede de Viver… Os sete filmes com seu amigo Burt Lancaster ficarão… Apenas um corpo desaparece, e Hollywood na quarta-feira à noite era apenas a cidade onde Kirk Douglas havia trabalhado por algum tempo.
Ele nem precisou ganhar um dos três Oscar que disputou, embora em 1996 tenha recebido o troféu honorário. O ator era alguém que gostava de trabalhar muito mais do que se deleitar com o resultado: “Gosto de filmar mais do que me ver nos filmes. Quase evitei Gladiador, porque temia que me lembrasse muito o meu Spartacus. Além disso, antes os filmes em geral eram melhores. Portanto, a técnica não era a coisa mais importante, mas os personagens e a história. É claro que bons filmes também são feitos hoje em dia, mas muitas vezes toda essa bobagem digital arruína o trabalho dos atores”, afirmou em 2001.
‘Eu sou Spartacus’, contra a caça às bruxas
Kirk Douglas não apenas escreveu em letras maiúsculas algumas páginas da grande enciclopédia de Hollywood, como também, na vida real, publicou uma dúzia de livros. O mais famoso foi seu primeiro volume de memórias, O Filho do Trapeiro. No último, Eu Sou Spartacus, contou sua participação numa jogada que levou ao fim de uma das etapas mais sombrias do cinema americano. “Essa caça às bruxas destruiu vidas e carreiras, e eu fiz Spartacus com um roteirista que estava na lista negra, e teve que me esconder atrás de um pseudônimo para encontrar trabalho”, contou ele em 2012, quando o volume foi publicado, revelando que o nome de Dalton Trumbo, um renomado roteirista expulso da indústria pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, teve seu nome reintroduzido como autor do roteiro de Spartacus, produzido e estrelado por Douglas e dirigido por Stanley Kubrick em 1960. “Quando olho para trás, acho que a decisão sobre Trumbo foi a mais importante da minha carreira ”, disse ele aos 84 anos no Festival de Berlim, onde recebeu o Urso Honorário. Douglas enfeitava bastante a realidade nos seus escritos, mas um mandamento clássico afirma que “quando a lenda se torna fato, imprima-se a lenda”.
Issur Danielovitch Demsky nasceu numa família de origem judaica russa emigrada em 1908. Seu pai, que vendia trapos, abanou a casa da família quando Demsky era pequeno. Cresceu cercado de mulheres (tinha seis irmãs mais velhas), que foram as primeiras a lapidar o diamante bruto. Trabalhou em mais de 40 empregos desde adolescente e estudou na Universidade de Saint Lawrence, onde se formou em Letras. Posteriormente, estudou na Academia Americana de Artes Dramáticas, em Nova York. Em 1941 foi recrutado para servir na Marinha durante a Segunda Guerra Mundial. Retornou a Nova York com ferimentos de guerra e lá começou a atuar em peças teatrais graças ao apoio da jovem atriz Lauren Bacall.
Em 1946 estreou em Hollywood com O Tempo Não Apaga, de Lewis Milestone. E tocou de forma muito rápida o céu da indústria cinematográfica. Teve enorme cuidado ao escolher com quem trabalhou e os roteiros que aceitou, sem medo dos personagens expressarem seu talento. Nunca parou em seu ritmo vital e profissional: só aliviou sua paixão pelas mulheres quando se casou com sua atual esposa, Anne Buydens, com quem teve dois filhos, Peter e Eric Anthony, já falecidos. Michael e Joel nasceram do casamento anterior, com Diana Hill.
Em 1991, ficou ferido num acidente de helicóptero em Santa Paula (Califórnia). Em 1996, sofreu um derrame que afetou seriamente sua fala. Não conseguia ficar parado. Em 2009, aos 92 anos, subiu ao palco com Before I Forget (“Antes que me esqueça”), monólogo de 90 minutos que ele próprio escreveu sobre sua vida. Douglas investiu boa parte de sua fortuna em instituições de caridade, principalmente na luta contra o mal de Alzheimer.
Kirk Douglas morre tendo mais do que alcançado o objetivo de seu Midge Kelly, de O Invencível: “Não quero ser um ‘Ei, você!’ a minha vida toda. Quero que as pessoas me chamem de senhor”.
GREGORIO BELINCHÓN ” EL PAÍS” ( ESPANHA / BRASIL)