Qualquer análise sobre a economia brasileira precisa levar em conta a situação internacional. E há pelo menos quatro pontos obscuros no cenário global.
Ponto 1 – o lucro sem prosperidade das grandes corporações
Historicamente, o lucro foi associado ao crescimento e à prosperidade. Mais lucros significava mais investimentos e mais capacidade instalada na economia.
A era da “prosperidade sustentável” foi do fim da Segunda Guerra aos anos 70. Havia a retenção e reinvestimentos dos lucros, permitindo aumentar a capacidade das empresas, a qualificação dos funcionários, tornando-as mais competitivas. Esse modelo começou a ruir em fins dos anos 70, promovendo dois fenômenos simultâneos: instabilidade do emprego e desigualdade da renda.
Nos EUA, desde a primeira metade da década de 90, a remuneração dos principais executivos dobrou ou triplicou. E os lucros passaram a ser apropriados preferencialmente por eles e pelos acionistas.
Essa política veio no rastro de novos conceitos que visavam asfaltar o caminho das grandes corporações. Na área da concorrência, a ideia de que a concentração permitia ganhos de escala que beneficiavam, em última instância, o consumidor.
Na apropriação dos lucros a ideia de privilegiar o acionista, por ser ele o único que correria riscos, apostando na companhia, e dos executivos, em um momento em que os CEOs passam a substituir as famílias no comando das grandes corporações.
Assim como os consumidores não foram beneficiados pela cartelização global, na distribuição dos lucros das empresas ignorava-se o contribuinte, que ajuda a bancar as agências regulatórias, a infraestrutura e os investimentos em ciência e tecnologia; e os trabalhadores, que apostam na empresa desenvolvendo sua capacidade através de uma carreira. Ambos seriam contemplados se os lucros fossem reinvestidos na melhoria das empresas e do nível dos trabalhadores.
Esses pontos são lembrados por William Lazonick, em estudo publicado na Harvard Business Review.
Nos EUA, diz ele, 0,1% da população, onde se incluem os executivos, se apropria de quase todos os ganhos da renda das empresas. Os sistemas de participação em resultados privilegiam o curto prazo, a redução de custos, o desinvestimento em todas as políticas de médio e longo prazo – capital humano, inovação, investimento em imagem etc.
Um dos instrumentos mais perniciosos é o da recompra das ações pela própria empresa, aproveitando a fase de juros baixos.Leia também: Na tragédia de Minas, o descaso da administração encontra os efeitos da mudança climática
As 450 empresas do índice S&P 500 de 2003 a 2012 usaram 54% de seus lucros – total de US$ 2,4 trilhões – para recompra das próprias ações das companhias no mercado. Outros 37% foram pagos em dividendos. Menos de 10% foram aplicados em investimentos produtivos ou em melhoria dos salários.
Nos dois casos, a estratégia é motivada pelo interesse direto dos executivos, cuja maior parte da remuneração é baseada em ações da companhia. E recompras melhoram as cotações dos papéis.
Em 2012, os 500 executivos mais bem remunerados receberam, em média, US$ 30,3 milhões cada. 42% desse total vieram de ações de ações e 41% de prêmios de ações.
Recomprando as ações, aumentam seus preços, os ganhos dos executivos e, ao menos temporariamente, permite as empresas atingir as metas de lucro por ações trimestrais.
Mas houve o fechamento maciço de plantas, o fim da carreira do colarinho branco na mesma empresa, o enfraquecimento dos sindicatos
Hoje em dia, a saúde econômica dos EUA depende de legislações que controle as recompras de ações e os salários dos executivos. Especialmente após 1991, quando a SEC permitiu a venda imediata das ações recebidas por eles.
Esse modelo trouxe consequências complexas. A primeira, a enorme concentração de renda no período. A segunda, a precarização do emprego, despertando reações nacionalistas em vários países. A terceira, a perda de dinamismo das economias centrais.
É nesse quadro, de prazo longo, que surge o fantasma atual, de nova desaceleração da economia mundial.
Peça 2 – os riscos da desaceleração da economia global
Países podem entrar em recessão. Economia global, não. Quando um grupo de países cai, sempre há a possibilidade de outro grupo de países segurando a queda. E o principal indicador dessa processo contra cíclico é o comércio mundial.
As últimas estimativas do FMI indicam que o PIB mundial cresceu apenas 2,9% em 2019 – o pior desempenho desde a crise de 2008 e abaixo do ritmo de 3,8% ao ano do pós-crise no período 2010-2018.Leia também: Clipping do dia
Aceita-se que a recessão global se dá quando o crescimento cai abaixo de 2,5% ao ano. A faixa entre 2,5% a 3,5% ao ano é considerada zona de perigo. Portanto, apenas 0,4 ponto separa o PIB global do risco de recessão.
A previsão do FMI para 2020 e 2021 é de 3,3% e 3,4% respectivamente. No ano passado, revisou seis vezes suas previsões. Agora, com as medidas draconianas da China, para enfrentar o coronavirus, mais as incertezas com as guerras comerciais, a imprevisibilidade aumenta.
O indicador mais grave é o do comércio internacional, principal termômetro para uma economia cada vez mais globalizada. De 2010 a 2018 a média de crescimento do comercio mundial foi de 5%. No último ano, o FMI estima crescimento de 1% no comércio, depois de sete revisões para baixo.
O comércio mundial é visto como um amortecedor das crises globais. Agora, o colchão é pequeno, como observa o economista Stephen Roach.
Peça 3 – o aumento do endividamento mundial
O endividamento sustentável depende de dois fatores: a garantia de crescimento da renda; e a garantia de manutenção de juros baixos.
O Banco Mundial prevê uma próxima crise das dívidas, que estão crescendo no mundo todo. Estimuladas pelos juros baixos, as dívidas aumentaram para 230% do PIB global.
Nas últimas décadas, houve três crises de dívidas.
A primeira foi no início dos anos 80, quando os Estados Unidos explodiram a prime, pegando n contrapé economias emergentes, entre as quais o Brasil. Começou pelo México e caíram mais 16 países laino-americanos.
O segundo foi em 1997, com a queda de economias do leste asiático, como Indonésia, Malásia, Coreia do Sul e Tailândia. Em 2008 explodiu a crise do subprime, quando o Lehman Brotehrs entrou em colapso.
Agora, o Banco Mundial alerta para uma nova onda. As economias emergentes acumulam uma relação dívida/PIB de 170%. Entre os desenvolvidos, a vulnerabilidade maior é da Grã-Bretanha. Entre as emergentes, a Índia, que depois de um período de crescimento acelerado enfrenta problemas econômicos de monta.
O problema maior é o efeito contágio, quando uma crise localizada se espalha. Especialmente em um momento em que não há consenso sobre as políticas anti cíclicas a serem adotadas.
O segundo efeito dos juros baixos é a criação de bolhas especulativas em ativos reais. Os preços das ações, hoje em dia, a saída de capitais externos da bolsa brasileira, mostram que já começou a dança dos ativos, do capital financeiro pulando de galho em galho, saindo de ativos caros e buscando outros mais baratos, que serão inflados até que estourem. O fenômeno das moedas digitais é típico dessas fases de especulação.Leia também: Reforma tributária chilena prioriza idoso e aumenta impostos para ricos
Peça 4 – a fantasia da política fiscal
O alerta foi dado por Kenneth Rogoff, um dos principais economistas a desenvolver trabalhos sobre crises globais. Prevê ele que a próxima recessão será pior do que se imagina.
Depois que as taxas de juros internacionais chegaram perto de zero, ocorreu o que Rogoff chama de “evangelismo fiscal” entre economistas e formuladores de políticas públicas.
Rogoff não acredita em sua eficácia por um fenômeno óbvio: a política fiscal é politizada demais para substituir os bancos centrais. Segundo ele, as questões fiscais mexem com crescimento, estabilidade a longo prazo, alocação de recursos, por isso mesmo precisam ser decididas de modo democrático.
Políticas monetárias são simples e impessoais. A política monetária dos anos 90 e as metas inflacionárias, que entraram em vigor em 1999, promoveram o maior processo de transferência de renda da história. Mas beneficiam setores inteiros (no caso do Brasil, os detentores de capital), por isso mesmo sendo politicamente menos vulneráveis.
Já políticas fiscais permitem medidas direcionadas, beneficiando setores politicamente mais influentes. É só conferir a política de desonerações fiscais do período Dilma-Mantega e a polarização política permitida pela política de campeões nacionais, fragilizando politicamente o governo. Como lembra Rogoff, estabilizadores invariavelmente têm efeitos de incentivo, e as batalhas políticas sobre até que ponto devem ser expandidos são inevitáveis.
Por isso mesmo, acredita pouco nas políticas fiscais para evitar a próxima recessão.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)