BACALHAU DE CONSOADA À MESA

Deslumbrei-me, ao chegar a Lisboa, há quase 22 anos, como enviado do prestigioso diário econômico brasileiro Gazeta Mercantil, para fazer a cobertura da monumental Expo 98, instalada na margem oriental do romântico Rio Tejo, a celebrar os 500 anos da histórica expedição à Índia de Vasco da Gama (1469 – 1524) – após navegar todo o Sul do Atlântico, contornar o Cabo da Boa Esperança e cruzar, em diagonal, o Oceano Índico, rumo ao Norte, em direção a Calecute.

Entusiasmado com a grandiosidade da mostra dedicada ao feito do legendário almirante alentejano e surpreso diante das transformações ocorridas na Metrópole, depois dos convulsionados anos seguintes à Revolução dos Cravos, escrevi um longo artigo, publicado em 21 de maio de 1998, estampado na primeira página do jornal, no qual afirmei que, mesmo que nunca houvesse existido o poeta Luis de Camões (1524 – 1580), o Homero lusitano que imortalizou, no fim do século XVI, a epopeia dos compatriotas nos mares da Idade Moderna, ninguém poderia duvidar do que foram capazes os indomáveis portugueses com suas caravelas. As marcas da passagem daqueles marinheiros, afinal, resistiam em todos os continentes.

Ainda que tivessem sido apagadas pelo tempo, e não restassem resquícios da língua portuguesa nas Américas, Áfricas e Ásia, mesmo assim seria fácil perceber o quanto viajou o país mais ocidental da Europa.

Provavelmente é a única nação do mundo cujo ingrediente fundamental do prato nacional, o universalmente famoso Bacalhau à Portuguesa, tem que ser pescado a muitas milhas de sua costa, precisamente, nas águas frias do Canadá e do Mar da Noruega. Provando, conforme concluí, que um dia houve, como na Grécia, uma Ilíada do Reino de Afonso Henriques (1109 – 1185).

A paixão pelos peixes salgados levaria os portugueses, em missão que partira do Arquipélago dos Açores, a descobrir a América, em 1473, com o desembarque do algarvio João Vaz Corte-Real (1420 – 1496) no atual Canadá – 19 anos antes da chegada do genovês Cristóvão Colombo ao Mar do Caribe. Corte-Real foi o primeiro europeu a vislumbrar o Novo Mundo, ao qual deu o nome de Terra Nova do Bacalhau – denominada hoje apenas de Terra Nova, que, juntamente com a Península do Lavrador, alcançada também pelos portugueses, integram desde 1949 a décima província canadense.

É mais habitual a presença à mesa do prato favorito luso nesta época – da ceia de Natal, no 24 de dezembro, ao Réveillon, no 31, e no almoço do Dia de Reis Magos, comemorado a seis de janeiro, que, neste 2020, acontecerá na próxima segunda-feira. Vem servido nesta ocasião, especialmente, à noite da véspera natalina, após a abstinência de carne por um dia, o saboroso Bacalhau de Consoada, uma corruptela do idioma camoniano surgida da contração de duas palavras latinas: consolata e consolare, quer dizer, depois do jejum, uma refeição de consolação. E, por isso, é riquíssimo e vai à panela com todos – sobretudo ao Norte do País.

São componentes que não podem faltar na Consoada, para além das postas salgadas, batatas em pedaços, cenouras, grãos-de-bico, chamados também em Portugal de gravanços ou ervilhas de bengala, grelos, isto é, a couve, e ovos cozidos duros – bem como dentes de alhos, cebolas, pimenta-preta moída, vinagre de vinho branco e azeite extravirgem. Uma super bacalhoada, enfim, digna do nome.

O bacalhau é também, na virada do ano, pièce de resistence nas ementas da vizinha Espanha – conforme registrei na edição de 29 de dezembro de 2016. Principalmente na Província de Vizcaya, na Região Autônoma do País Basco, ao Norte de Madri, onde a entrañable capital Bilbao dá nome à iguaria, o robusto Bacalao a la Bilbaina, ao molho de tomate, bastante difundido no resto da Espanha.

O pescado frequenta igualmente a cozinha na Itália. Tradicionalíssimo às távolas de Roma em todas as estações do calendário, no almoço das sextas-feiras, em casa ou nas trattorie – as populares cantinas. Os romanos comem nesses dias o delicioso Baccalà ai Ceci, ou seja, com grão-de-bico, ligeiramente picante, al sugo de tomate –acentuado como o de Bilbao. Curioso, aos olhares estrangeiros, é que às sextas-feiras as postas dessalgadas e os grãos demolhados são vendidos na calçada dos açougues.

Mas em nenhum lugar da Europa é tão apreciado quanto em Portugal. Muito menos na Noruega, onde há séculos o País envia seus bacalhoeiros. O prato típico dos noruegueses é feito, aliás, com o delicado salmão. Já o bacalhau, devidamente salgado, é remetido ao Sul do continente. Existe uma relação leal e duradoura dos portugueses com o bacalhau – sem paralelo na culinária no País.

ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)

Albino Castro é jornalista e historiador

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