Ela estrelou sete filmes de Jean-Luc Godard após ser descoberta pelo diretor em uma campanha publicitária
A atriz Anna Karina, um dos principais rostos da Nouvelle Vague que sacudiu o cinema francês nos anos sessenta, morreu no sábado em Paris aos 79 anos, em consequência de um câncer. Com sua morte termina uma década que viu desaparecerem quase todos os protagonistas dessa revolução cinematográfica, como Claude Chabrol, Éric Rohmer, Jacques Rivette e Agnès Varda. O único sobrevivente é Jean-Luc Godard, com quem a atriz rodou sete filmes e viveu uma história de amor −breve, mas intensa− que deixaria uma marca indelével na sensibilidade estética da época e teria uma influência profunda no cinema das décadas posteriores.
Godard não se deu por vencido. Oito meses depois, o diretor lhe ofereceu o papel principal de O Pequeno Soldado (1963), filme sobre a guerra da Argélia que a censura gaullista proibiu durante dois anos. O mesmo aconteceria com o filme seguinte de Karina, A Religiosa (1966), uma adaptação do livro homônimo de Diderot, dirigida por Jacques Rivette. A atriz se casou com Godard em 1961, grávida de um filho que acabaria perdendo. Foi o início de uma colaboração da qual surgiriam filmes que marcaram uma época, como Uma Mulher É Uma Mulher –com o qual Karina ganhou o prêmio de interpretação na Berlinale de 1962–, Viver a Vida, Bando à Parte, Alphaville e O Demônio das Onze Horas. Mais que uma musa passiva, Karina foi um dos artífices dessa passagem abrupta para a modernidade no cinema. Dotou-a de um olhar de filme mudo, de uma franja que roçava suas pálpebras e de um sotaque dinamarquês que, com o passar dos anos, tornou-se quase imperceptível.
Seu casamento com Godard durou apenas quatro anos. “Foi uma relação extraordinária, mas era impossível viver com ele. Ele queria que eu passasse a vida esperando-o em casa”, contou. A atriz começou a trabalhar então com outros grandes cineastas, como George Cukor (Justine), Luchino Visconti (O Estrangeiro), R. W. Fassbinder (Roleta Chinesa) e Raúl Ruiz (A Ilha do Tesouro). Também cantou as partituras de Serge Gainsbourg, que escreveu uma comédia musical para ela (Anna) e a levou a entoar um de seus maiores sucessos, Sous le Soleil Exactement.
Karina também assinou quatro romances −um deles, com posfácio do escritor Patrick Modiano– e realizou três filmes como diretora. O primeiro destes, Vivre Ensemble, foi apresentada no Festival de Cannes de 1973, onde recebeu críticas negativas. Reestreado na França há alguns meses, as imperfeições dessa história de amor entre um professor casado e uma mulher boêmia não impediram que fosse vista uma cineasta de talento. “Não se entendeu que uma atriz quisesse trabalhar como diretora. Era uma cultura machista, muito mais que hoje”, explicou Karina em 2017. Apesar de todas as suas conquistas, ficou vinculada para sempre ao nome de Godard. O diretor lhe dedicou algumas palavras amáveis durante um reencontro televisivo em meados dos anos oitenta, depois de vinte anos sem que se falassem: “Deveria ter trabalhado em Hollywood, mas Hollywood já tinha deixado de ser o que era”.
Como dizia um diálogo que Godard escreveu para ela, foi uma mulher que olhava com sentimentos em um mundo que se limitava a falar com palavras. Nos últimos anos, a atriz costumava ser vista em festivais de cinema −que lhe dedicaram homenagens um tanto tardias−, sempre escondida sob um chapéu Panamá e encadeando cigarros e taças de vinho rosé. No Festival Lumière de 2017, onde recebeu uma homenagem por toda sua carreira, também se declarou categoricamente a favor do nascente #MeToo. “O que Weinstein fez é nojento, uma vergonha. Mas ele não é o único. Houve mais, e eles têm nomes conhecidos. Mas não vou dizê-los”, afirmou naquela ocasião. Anna Karina leva esse segredo para o túmulo.
ALEX VICENTE ” EL PAÍS” ( ESPANHA / BRASIL)