Tecnologia de edição de genes é vilã
Não se pode condenar previamente
Lembro que na minha antiga escola primária nos contava uma lenda, a qual alertava que o banheiro seria assombrado por uma mulher loira com algodão nas narinas. Ninguém ia ao banheiro sozinho. E o Skylab? Eu tinha certeza absoluta que ia cair justamente na minha casa! Acidente em Chernobyl? Cada vez que a luz acabava (o que naqueles tempos acontecia com frequência), era sinal de que o mesmo desastre estava ocorrendo na usina de Angra. E a ampla divulgação da profecia de Nostradamus, anunciando que “uma tragédia causaria a morte de milhares de jovens” às vésperas do primeiro Rock in Rio?
Como os meus medos foram sempre sendo desfeitos por meio de argumentos científicos, não me dobrei à ressuscitação de Nostradamus. Cantei com entusiasmo “we are the champions, my friends, and we’ll keep on fighting ‘til the end” com Freddie Mercury, e comemorei o fim da ditadura ao som de Cazuza, cantando “Pro Dia Nascer Feliz” naquele festival de rock.
Dias atrás, em pleno século 21, assisti a 1 desenho animado produzido pela Articulação Nacional de Agroecologia, no qual o narrador fala com uma voz fantasmagórica que o mais novo avanço da biotecnologia, o “gene drive”, é a “tecnologia mais perigosa, pode chegar até você sem você saber, pode levar à extinção das espécies”. E, por fim, pergunta: “Você gostaria de virar cobaia?” O vídeo é acompanhado por 1 documento denominado “Sem consulta popular, biotecnologia conhecida como gene drives pode resultar em desastres irreversíveis à saúde, alimentação e meio ambiente”.
É assustador. Se eu tivesse menos de 8 anos de idade, não dormiria, esperando esse final apocalíptico.
Mas, para quem já tem mais de 8 anos de idade, é fácil perceber que a narrativa não passa de mais uma manifestação de “fearmongering”. Ou seja, a disseminação proposital de rumores assustadores e exagerados sobre 1 suposto perigo iminente. Normalmente, tem 1 objetivo político e um pano de fundo obscuro.
O que se sabe, de fato, é que a tecnologia de edição de genes conhecida como “gene drive” foi desenvolvida recentemente e ainda está sendo estudada por pesquisadores em laboratórios. É uma técnica que pode alterar 1 gene específico e essa mudança poderá ser passada para até 100% dos descendentes, em vez de cerca de 50% de técnicas anteriores. Isso significa que as mudanças conseguidas podem ser mais eficientes e com efeito mais rápido. Um exemplo de uso seria o impedimento de mosquitos disseminarem doenças importantes como malária, dengue, zika, chikungunya e febre amarela.
Tudo ainda está em fase de estudos. Por enquanto, os pesquisadores estão realizando experimentos em ambientes altamente controlados para verificar com segurança os benefícios e os riscos. Há também discussões para definição de protocolos para orientar o progresso em cada estágio do teste dessa nova tecnologia e subsidiar a elaboração de normas de conduta e segurança. Estudos estão avançando rápido e de forma profunda, mas ainda é uma técnica que não está sendo usada. Vale a pena destacar que as equipes de pesquisa estão estudando como controlar e reverter os genes drives, por exemplo, com restrições quanto à herdabilidade após 1 determinado número de gerações.
O próprio documento que acompanha o assustador vídeo afirma que “há duas frentes majoritárias no posicionamento dos países em relação às novas biotecnologias (…) durante a 14ª Conferência das Partes da Convenção da Diversidade Biológica (COP 14), realizada em dezembro de 2018, os movimentos sociais e organizações da sociedade civil presentes, bem como o Egito, Tailândia, Bolívia e El Salvador, posicionaram-se pela abstenção da utilização dos condutores genéticos enquanto houver incertezas nas pesquisas sobre os riscos. Já o Brasil, os países africanos, a Nova Zelândia, Malásia, Índia, Indonésia, Argentina, Peru, Canadá, Panamá e Suíça sustentaram a posição de utilização dessas novas tecnologias com precaução e análise caso a caso, sendo esta a posição consolidada no documento oficial”.
O Brasil teve a sensatez de agregar-se ao 2º grupo. O que significa que não optamos pelo atraso. Tampouco a tecnologia “gene drive” será autorizada no atacado, por meio de alguma lei. Cada produto contendo essa tecnologia será analisado caso a caso, da mesma forma como é procedido com os produtos transgênicos. Também não serão analisados por qualquer pessoa. Mas por 1 seleto grupo de cientistas conselheiros da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), que é obrigada a seguir uma das mais rigorosas leis sobre biossegurança do mundo.
Freddy Mercure e Cazuza morreram no início da década de 1990, quando não havia tratamento eficaz para Aids, até então doença mortal. A epidemia de Aids foi, de fato, 1 grande demônio que assombrou o mundo. A humanidade estava assustada e com razão. Hoje, graças ao avanço da ciência, 23,3 milhões de pessoas têm acesso à terapia antirretroviral, segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids).
Mas e a dengue, a zika, a chikunguya e a febre amarela? Continuam matando ou deixando sequelas terríveis. E a malária? Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), cerca de 3,2 bilhões de pessoas –quase a metade da população mundial– correm risco de serem infectadas por essa doença.
Se há uma tecnologia que, potencialmente, pode ajudar a evitar tais doenças, por que privar a priori uma população inteira de se beneficiar dela?
Não se pode condenar previamente nenhuma tecnologia in abstrato. É preciso analisar cada caso, quanto à sua biossegurança.
Portanto, não deixaremos que narrativas obscurantistas, catastróficas, apocalípticas e repletas de demônios contaminem a população e as tomadas de decisão. É preciso ficar sempre ao lado da ciência, ainda que esta se mostre hesitante em certos momentos. Ou insuficiente para resolver imediatamente alguns dos problemas e desafios. O conhecimento científico gradualmente avança e se impõe e, assim, afasta antigas ameaças.
MARIA TEREZA PEDROSO ” BLOG PODER 360″ ( BRASIL)
Maria Thereza Pedroso é engenheira agrônoma pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (1993), mestre em desenvolvimento sustentável pela UnB (2000) e doutora em Ciências Sociais pela UnB (2017)