O sultão otomano foi deposto, o czar russo executado, o Kaiser teve de se exilar, tal como o último imperador Habsburgo, Carlos I, que morreu na Madeira. A Primeira Guerra Mundial fez desaparecer impérios e mudou o mapa da Europa e do Médio Oriente de forma radical, mas nem todas as fronteiras sobreviveram até agora. Faz hoje 101 anos que as novas fronteiras vieram substituir as antigas.
esapareceu o Império Otomano, desapareceu o Império Russo, desapareceu o Império Austro-Húngaro, desapareceu o Império Alemão. Se alguma coisa a Grande Guerra de 1914-1918 foi, foi um cemitério de impérios, além de de gentes, pois morreram 15 a 19 milhões, entre militares e civis. E, embora sujas de sangue, nas terras antes governadas pelos descendentes de Osman (ou Otmão), pelos Romanov, pelos Habsburgo e pelos Hollenzollern nasceram novíssimos países, como a Checoslováquia, ou ressurgiram outros muito antigos, como a Polónia.
O abalo geopolítico foi tal que se no início do conflito só havia três repúblicas na Europa (quatro, contando com São Marino), quando as armas se calaram esse número estava prestes a ser triplicado, pois da Finlândia à Áustria vários povos escolheram essa forma de Estado, renunciando às cabeças coroadas. E mesmo no Médio Oriente, no coração do que durante seis séculos fora o Império Otomano, emergiu a República da Turquia.
Não se pense, porém, que foi no dia a seguir ao Armistício de 11 de novembro de 1918, faz hoje 101 anos, que as novas fronteiras vieram substituir as antigas, como se fosse um passe de mágica. Houve, claro, acordos assinados, mas também acordos desrespeitados, negociações secretas, promessas impossíveis de cumprir, alguns ultimatos e sobretudo muitas pequenas guerras que se seguiram à Grande Guerra, décadas mais tarde rebatizada de Primeira Guerra Mundial até porque houve a partir de 1939 uma Segunda Guerra Mundial (a expressão, porém, chegou a ser usada logo em 1914, não pegando porque se preferiu chamar, e proclamar que aquela seria, a Guerra para Acabar com Todas as Guerras).
Houve independências ocorridas ainda antes do final da guerra, como a da Finlândia em 1917, com o grão-ducado a aproveitar a revolução russa para cortar com Moscovo e tornar-se uma república até hoje. Depois de séculos submetida à Suécia, e mais outros cem anos na órbita da Rússia, uma Finlândia soberana emergia assim no mapa da Europa, um pouco maior até do que hoje é pois durante a Segunda Guerra Mundial perdeu um terço do território para a União Soviética.
O drama húngaro e o renascer da Polónia
Houve também independências praticamente a coincidir com a assinatura do Armistício, como a da Hungria, país que, porém, até hoje não consegue celebrar 1918 pois o célebre Tratado de Trianon (nome de um pavilhão no parque do palácio de Versalhes) deixou de fora territórios que os magiares ainda hoje consideram seus e onde continuam a viver húngaros, como no sul da Eslováquia ou na Transilvânia (Roménia).
No caso da Roménia, não é o centenário da independência que por estes dias se celebra, mas sim a constituição da Grande Roménia, integrando zonas romenófonas que estavam sob controlo dos diferentes impérios. Nunca como entre as duas guerras mundiais o Estado romeno foi tão vasto, perdendo depois parcelas como a Moldávia, que até 1991 foi soviética e hoje é país independente.
Já a Checoslováquia, notável país surgido da junção da Boémia e da Morávia com as terras eslovacas, teria há dias celebrado também cem anos se ainda existisse. Mas em 1993, as duas metades da confederação separaram-se pacificamente dando origem à República Checa e à Eslováquia.
Também nascido da Primeira Guerra Mundial foi o Reino dos Sérvios, dos Croatas e dos Eslovenos, que resultou da junção da Sérvia com territórios sobretudo dos chamados eslavos do sul antes integrados no Império dos Habsburgos. Ainda no período entre as duas guerras mundiais adotou o nome de Jugoslávia, que manteve quando se transformou numa república socialista após 1945. Depois de 1991, a federação desagregou-se em consequência de várias guerras e depois da separação definitiva da Sérvia e do Montenegro até mesmo a pequena Jugoslávia deixou de existir. Em seu lugar surgiram seis países, sete se contarmos com o Kosovo, província de maioria étnica albanesa que se separou da Sérvia e que é reconhecida como independente por uma centena de países, mas não, por exemplo, por potências como Rússia ou China.
E que dizer da Polónia? Nos tempos da Confederação Polaco-Lituana chegou a ser o segundo maior país da Europa, indo do Báltico ao mar Negro. Só que no final do século XVIII foi retalhada entre russos, austríacos e prussianos desaparecendo como Estado mas não como nação, com a Igreja Católica a assumir a missão de preservar a língua, a cultura e, claro, a religião. Assim, novembro de 1918 assistiu ao renascer de um país milenar, com capital em Varsóvia, de repente um quase Estado-tampão entre a Rússia comunista/União Soviética, com um território amputado mas gigantesco, e uma Alemanha republicana, humilhada pelos vencedores e que não tardou muito a procurar vingança através da reconquista.
E em setembro de 1939 a Polónia era atacada tanto por nazis como por soviéticos. Ocupada, a sua sobrevivência em 1945 teve de passar não só pela inclusão no bloco comunista como pela perda de territórios a leste (Vilnius, por exemplo, capital da Lituânia), com compensação relativa a oeste, onde a famosa Stetin alemã do discurso de Winston Churchill sobre a Cortina de Ferro até Trieste hoje se chama Szczecin.
Também na Europa Ocidental, mesmo sem nascerem países, o conflito mexeu nas fronteiras, com a recuperação da Alsácia pela França a ser a mudança mais evidente no mapa. Mas não esquecer os ganhos territoriais belgas à Alemanha ou os italianos à Áustria. Esta última, aliás, simboliza por si só o abalo sísmico de 1914-1918: de coração de um império vastíssimo povoado por dezenas de povos passou a pequeno país de língua alemã, hesitante em integrar ou não uma Alemanha apesar de tudo poderosa. Adolfo Hitler era austríaco e assim que pôde avançou com o Anschluss.
Tal como a Áustria, a moderna Turquia nasceu das cinzas de um império familiar. E chegou a ter previsto um destino insignificante, pois com as potências a dominarem Istambul e os estreitos, a Grécia a anexar a costa do Egeu, os arménios a ficarem com leste da Anatólia, o povo turco ficava com um território em redor de Ancara. Um general brilhante, Mustafa Kemal, liderou a luta dos turcos por uma pátria, afastou o sultão e acabou com o califado e adotou como nome de família Atatürk, ou “pai dos turcos”. Conseguiu manter Istambul, a antiga Constantinopla, e garantir toda a Anatólia. Mais tarde os franceses, colonizadores da Síria, cederam ainda a região de Antakya.
O desaparecimento do Império Otomano deu origem também a vários países árabes como a Síria e o Iraque, que num primeiro momento estiveram sob controlo de franceses e britânicos. Em benefício do célebre acordo Sykes-Picot que dividiu o Médio Oriente em áreas de influência. Traídos em parte pelos britânicos, para grande desgosto de Lawrence da Arábia, os hachemitas de Meca tiveram se contentar-se com os tronos da Jordânia e do Iraque, vendo os seus rivais sauditas apoderar-se do seu bastião histórico no Hedjaz, juntando-o ao Nadj para em 1933 ser criada a moderna Arábia Saudita. E Israel, apesar de só ir nascer em 1948, pode agradecer muito à Declaração Balfour de 1917, uma promessa pelos britânicos de criação de um lar nacional judaico na Palestina.
LEONÍDIO PAULO FERREIRA ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” PORTUGAL)
(Texto publicado originalmente a 11 de novembro de 2018)