No reino da “necropolítica”, a autorização prévia para matar é uma banalidade. Mortes de descartáveis acontecem; no Brasil, são uma coisa natural
O filósofo Achille Mbembe cunhou uma expressão adequada para definir o tempo presente: o mundo vive sob a égide da “necropolítica”.Publicidade
A necropolítica espalha ódio, destruição e morte onde brota. Atendo-nos, apenas, ao caso brasileiro, não é difícil identificar evidências de estarmos sob o império de Tânatos, o deus grego da morte.
A obsessão pelo sacrifício da vida parte do propósito de eliminação física − pelo Estado ou por milicianos (cancro do próprio Estado) − dos “descartáveis” de toda espécie, como gosta de dizer o papa Francisco. Passa pelo descaso com o meio-ambiente, pela desídia frente a epidemias; por ausência de políticas de geração de postos de trabalho decente; pelo desmonte da seguridade social (exceto para as forças de segurança); pela facilitação aos “homens de bem” do uso de armas de fogo, até chegarmos ao cúmulo da revogação de regras básicas de segurança no trânsito, como a obrigatoriedade de cadeirinhas para transporte de bebês nos veículos.
Não seria descabido cogitar, até mesmo, que fundamentos esotéricos elaborados em círculos de ocultismo, misticismos, carismas, mitologias e que tais estejam a dar suporte a esse desvairado culto da morte. “Caveira”! Heinrich Himmler iria gostar disso…
Desde a promulgação da Constituição, em 1988, sempre se tomou como assente que o maior dos direitos invioláveis dos brasileiros e dos estrangeiros que aqui vivem seria o “direito à vida”, ora posto em xeque pelo domínio dessa tresloucada tanatocracia. Ao lado da vida, o texto constitucional lista outros direitos intocáveis: a liberdade, a igualdade, a segurança e, finalmente, a propriedade.
Mas, afinal, o que vale mais, quando está em jogo a atuação protetiva do Estado? A vida? A liberdade? A igualdade? A segurança? A propriedade? O mantra dos carrascos de plantão é dizer que a prioridade é para “o direito à segurança”. Direito?
Retórica para não revelar que a regra, na lição de Giorgio Agamben, seria o Estado de Exceção. Obviamente, “direito” à segurança apenas para alguns que podem viver e gozar de suas propriedades: os mais ricos e os mais poderosos, termos que, na maioria das vezes, se confundem.
O Brasil é do Senhor Jesus
É curioso constatar que, quanto mais se apregoa que “o Brasil é do Senhor Jesus”, mais se ignora que o Senhor Jesus teria dito que viera “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (João, 10, 1-10).
No mundo real dos que residem neste País, os registros, em números elevados, dos casos de morte violenta em ações que envolvam policiais, entabulados nos famosos “autos de resistência” (hoje rotulados como “homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial”), e o crescimento das ocorrências de desaparecimentos em áreas controladas por milicianos evidenciam aquilo que o professor Sérgio Adorno define como uma “certa atitude de desprezo pela vida dos mais pobres”.
E o que dizer do que se passa nas galerias das penitenciárias brasileiras, essas verdadeiras “masmorras” − como as definiu um ex-ministro da Justiça − espaços onde a pena de morte é institucionalizada, ditada e barbaramente aplicada por coletivos criminosos que as controlam, quando caberia ao Estado controlá-los?
E por falar nesses calabouços, é, no mínimo, intrigante observar que, descontados os 40% da população carcerária retidos preventivamente, isto é, sem sentença de condenação, a maior parcela dos que lá se encontram praticou delitos contra a propriedade (notadamente, roubos e furtos) ou envolveram-se com entorpecentes. Os crimes contra a vida, teoricamente os mais graves, têm investigação concluída, com apontamento de materialidade e responsabilidade, em apenas algo em torno de 10% dos casos.
Isso mesmo: apenas um décimo dos homicídios no Brasil teria inquérito policial concluído. Menos, ainda, portanto, são os processos judiciais pertinentes.
Esse institucionalizado desprezo pela vida não se limitaria ao campo da segurança pública. Basta ver o que ocorre com a seguridade social no Brasil. O descaso com a saúde pública e a compressão de direitos no regime geral de previdência ou na assistência social só ressaltam o desdém, entre nós, do poder público para com a vida. Outro não é o diagnóstico quando se avalia, ainda a título de ilustração, a falta de atendimento das necessidades de saneamento básico da população.
Haveria, assim, a partir da conduta de agentes do próprio Estado, uma clivagem de natureza econômica ou social, como classe, poder, riqueza, gênero, orientação sexual, raça ou etnia, a graduar e mitigar a importância da vida “garantida” pela Constituição. Na realidade, nas áreas (no campo ou na cidade), onde vivem os estratos sociais mais marginalizados da população brasileira, presenciamos uma banalização da morte, a pôr por terra a promessa constitucional de que o Estado asseguraria, sem distinção de grupos sociais, a proteção à vida.
“A carne mais barata do mercado é a carne negra”
Os altos índices de morte violenta de jovens pobres e de pele parda ou escura, reiteradamente apresentados em relatórios oficiais, demonstram o contrário, isto é, uma divisão entre os beneficiários da proteção estatal. Esses relatórios, de quebra, reforçam o que saudoso Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappellette, já em 2002, destacavam em uma canção: “A carne mais barata do mercado é a carne negra: que vai de graça pro presídio e para debaixo do plástico; que vai de graça pro subemprego e pros hospitais psiquiátricos”.
A Constituição não tolera que o Estado promova o perdimento da vida, ao dizer, explicitamente, que não haverá pena “de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”. Entretanto, as proposições, de iniciativa do Poder Executivo, no sentido de se alterar o Código Penal (CP) para fazer prevalecer o entendimento de que há exclusão de ilicitude quando um agente policial pratica conduta tipificada como delito, ou seja, pode ser isentado de pena se sua ação foi motivada por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”, reforçam a percepção de que há algo de podre em nosso regime político.
E vale a pergunta: por que a tentativa de “livrar a barra” de policiais foi inserida no dispositivo que trata da legítima defesa, que pressupõe o uso moderado de meios de dissuasão da agressão atual ou iminente? A explicação, talvez, resida na afronta que seria enquadrar a licença para matar em outra espécie de exclusão de ilicitude prevista no art. 23 do Código Penal: o estado de necessidade.
Afinal, o § 1º do art. 24 do CP diz que “não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo”. Ora, não é de se esperar que o agente policial, que tem o dever de enfrentar o perigo, seja devidamente treinado para superar o medo, seja adestrado para evitar a surpresa, seja instruído para não se deixar levar por violenta emoção?
A inovação “jurídica” não passa de conversa para boi dormir. No reino da “necropolítica”, a autorização prévia para matar é uma banalidade. Mortes de descartáveis acontecem; no Brasil, são uma coisa natural.
THALES COELHO ” BLOG OS DIVERGENTES” ( BRASIL)
* Thales Chagas Machado Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional UFMGDeixe seu comentário