É um dos maiores conhecedores da cidade do Porto, jornalista, cronista e escritor, Germano Silva teve como tarefa mostrar a sua cidade a um lisboeta.
| Fotografia de Igor Martins (Global Imagens)
O ponto de encontro foi mesmo em frente à Sé, a meio da manhã. No local onde o Porto começou. Debaixo de chuviscos do típico céu cinzento com que o Porto costuma brindar os seus visitantes no outono, Germano Silva começou a mostrar a cidade que é muito dele. O jornalista de 88 anos, que embora reformado continua ligado ao Jornal de Notícias, é autor de vários livros e uma verdadeira enciclopédia viva da cidade. Nos últimos anos, além de escrever, faz, a passos largos apressados, caminhadas guiadas, por vezes para pequenas multidões, a mostrar e a contar as histórias pouco conhecidas dos recantos do seu Porto.
A “volta” pelo Porto de Germano Silva começa ali mesmo na Sé, local onde, acredita, a cidade nasceu. No Monte da Penha Ventosa, como se chamava o local, de vistas largas para o horizonte para precaver as chegadas de eventuais invasores. Certezas não as há e até há mesmo quem defenda que a cidade começou juntou ao rio, mas é algo difícil de saber, garante-nos: “Não é possível saber com exatidão o que aconteceu por aqui antes de 1120 e da chegada de D. Teresa.”
A praça em frente à Sé, arranjada com um pelourinho vistoso e pejada de turistas, tem esta configuração apenas desde os anos 1940. “O local sempre foi um aglomerado de casas, ruas e ruelas, que foram desaparecendo e ficando em ruínas até que deram lugar a esta organização”, conta. Por lá pontifica uma pedra inaugurada nessa altura que exalta a ajuda na conquista de Lisboa aos mouros, o que não deixa de ser curioso para os lisboetas. Mas há mais.
As chamadas escadas da rainha, que eram subidas por D. Teresa para de sua casa ir à Sé, ainda lá estão, uma casa de pedra, pertença dos mais abastados da altura, e que a organização de 1940 edificou ligeiramente ao lado do local original. Tudo isto vai saído naturalmente da voz de Germano Silva, que, sem pausas, explica que na fachada do edifício da Sé há, pelo menos, duas curiosidades que não devem ser deixadas de notar por quem lá passa: a figura de um barco incrustado na fachada da igreja “crê-se ser a representação mais antiga de uma coca, um barco costeiro de cabotagem”, e ainda, mais ao lado, umas linhas que serviam para confirmar as medidas, a vara e o côvado, dos produtos que os feirantes judeus vendiam naquela praça.
Numa cidade tão ligada ao clero, que, aliás, era quem mandava até ao reinado de D. João I, falou-se no santo padroeiro… que não é São João, como muitos pensam. É sim Nossa Senhora da Vandoma, a mesma que está no brasão da cidade.
O primeiro santo padroeiro do Porto foi São Vicente, o mesmo de Lisboa, depois, e desde o século XV, deu lugar a São Pantaleão, “e só em 1952 o título passa para a santa”.
O jornalista admite continuar intrigado por São João, um santo austero que viveu no deserto e se alimentava de mel e gafanhotos, ter ficado ligado a um feriado tão festivo e exuberante como os portuenses vivem todos os anos na passagem de 23 para 24 de junho.
As muralhas, as ruas
Dali, da Sé, passando pelo local onde estava uma das portas da muralha velha, a que tinha a imagem de Nossa Senhora da Vandoma (que agora está dentro da Sé) como guarda, Germano guia-nos pelas ruas próximas construídas quando a cidade começou a expandir-se além das muralhas. Visitámos a Rua Chã, uma das mais antigas da cidade e, a caminho, faz-nos olhar para trás, para o centro. “Uma vista privilegiada e que hoje está cheia de andaimes”, e continua, “era por ali, aponta para umas casas abaixo da Sé, que Camilo Castelo Branco viveu e frequentemente ia para cima dos telhados cantar canções às moças vizinhas”.
Chegados à Rua Chã, que antes era das Eiras, local onde vivia a grande burguesia da cidade entre os séculos XVIII e XIX, viajamos por momentos à Idade Média num beco sem saída, perto de onde ficava a antiga prisão medieval. A pedra no chão, a escuridão e contiguidade da rua, e mesmo os odores, fazem-nos viajar por momentos.
Seguindo depois pela Rua Chã, entramos numa loja com sapatos e peles pendurados à porta: é a Casa Soeiro que lá está há 80 anos. “Os objetos à porta era algo que se fazia noutros tempos, já que a maioria da população que vinha dos campos era analfabeta e assim podia identificar o tipo de comércio que se fazia.” Hoje, os vizinhos daquela casa de sapatos e curtumes são asiáticos que por ali tentam a sorte a vender bugigangas.Aliás, um pouco mais abaixo, noutra rua sem saída, existe um centro de culto para muçulmanos e outras religiões do Oriente.
Damos a volta e paramos na Rua do Loureiro. Germano Silva chama a atenção para os edifícios com arquitetura interessante que estão prestes a mudar. Foram comprados e as poucas lojas tradicionais, como a Confeitaria Serrana ou uma queijaria onde Germano se abastece regularmente, lutam pela sobrevivência. Entramos na Confeitaria Serrana, que em tempos foi uma ourivesaria, e sentamo-nos para um café. Tempo para apreciar o magnífico interior com um varandim com gradeamento de ferro de estilo arte nova. Surpreendente.
Germano Silva nasceu em Penafiel, mas no Porto está em casa, o carinho com que o tratam nesta e noutras lojas da cidade é de notar. Talvez como forma de agradecimento pelo que tem feito pelo seu Porto nas últimas décadas. Não nos demoramos muito no café. De passo acelerado, convida-nos a entrar na Estação de São Bento e, antes, remata: “Nunca vi uma cidade com tantos mosteiros”, justifica pelos três que ali existiam. O edifício da estação era um convento, o São Bento de Ave-Maria, de freiras beneditinas. Lá dentro, entre os vários painéis de azulejos da autoria de Jorge Colaço, a evocar batalhas e episódios importantes da história portuguesa, mostra-nos um segredo. Num deles está retratada a mulher do autor que parece olhar para nós, seja qual for o ponto onde nos posicionamos.
De volta à rua, Germano explica que aquele local, agora chamado de Praça Almeida Garrett, era um importante ponto de comércio e de festas e romarias. “No século XVIII, a cidade era muito religiosa e existiam muitas procissões e vias-sacras. Era uma forma de chamar o povo para junto da igreja.” Daí à Praça da Liberdade é um passo, apressado, mais uma vez, e ao centro lá está a estátua de D. Pedro IV, datada de 1866. Germano explica que nos lados está uma gravura que mostra a entrega do coração de D. Pedro IV à cidade do Porto.
O rei quis que o seu coração embalsamado fosse entregue à cidade, em testemunho de reconhecimento pelos devotados sacrifícios com que os portuenses lhe haviam afirmado a sua dedicação durante o cerco do Porto (1832-1833). Germano explica-nos o episódio e, tal como já o tinha feito numas linhas para a revista Visão em 2017, conta que o coração do monarca está depositado na capela-mor da igreja da Lapa, estando a chave na gaveta da secretária do presidente da câmara.
Subimos para a Avenida dos Aliados, construção de 1916, onde no topo está o edifício da câmara finalizado em 1957 e que à frente tem uma estátua de Almeida Garrett. Aí, Germano não resiste e contar que Garrett nunca foi uma pessoa muito querida para os portuenses. “Desde que designou o Porto como uma grande aldeia, as gentes da cidade nunca mais lhe ligaram muito.”
Caminhamos agora para Rua do Almada, mandada edificar por João de Almeida e Melo, familiar do marquês de Pombal que o mandou para o norte para alargar a cidade. “Ele dizia que as pessoas viviam umas em cima das outras e por isso conspiravam muito e decidiu abrir mais ruas, como esta”, conta.
Mais tarde, naquela mesma rua, estabeleceu-se a burguesia da cidade. “Era habitada por burgueses e as suas filhas que, depois de passarem o dia a bordar, a tocar piano e a falar francês, punham-se à varanda, no final da tarde, para ver passar os rapazes a cavalo, que correspondiam o interesse. Ainda hoje, em alguns dos varandins estão colocadas as iniciais dos burgueses que os mandaram construir.
O tribunal de Camilo
Continuamos na típica passada do jornalista portuense para o Largo Dona Filipa de Lencastre. E com uma curiosidade: num dos lados da praça num prédio também burguês, foi onde Camilo Castelo Branco foi julgado pelo pai de Eça de Queirós, que, embora numa primeira fase se tenha recusado, acabou por ter de o fazer. Nesse prédio funciona agora um restaurante turco. Germano ri-se e aponta para o prédio vizinho, onde em tempos existia um cabaret frequentado por artistas e escritores do Porto, como Manoel de Oliveira e Agustina Bessa-Luís.
Também ali perto, na Rua da Picaria, está a casa da família Sá Carneiro. Por lá, ainda vive a irmã de Francisco, o malogrado primeiro-ministro português.
O local é de tal forma cativante que uma vez os donos fecharam a loja esquecendo-se de que na cave estava um cliente a investigar os livros.
Mesmo ao virar da esquina da praça, na Rua de Aviz, entramos numa loja onde Germano é mais uma vez abraçado e acarinhado. É a Moreira da Costa, o alfarrabista mais antigo da cidade, aberto desde 1902. Apesar de o espaço ser há anos cobiçado pelo Hotel Infante Sagres, dono do resto do edifício, os livreiros resistem estoicamente. Lá dentro, descemos às caves onde milhares de livros centenários empoeirados fazem a delicia de investigadores, jornalistas e historiadores. Metade ainda está por catalogar, conta um dos donos. Germano Silva prontifica-se a agendar uma visita para breve. Quer descobrir se aqueles tesouros empoeirados têm mais histórias do seu Porto. O local é de tal forma cativante que uma vez os donos fecharam a loja esquecendo-se de que na cave estava um cliente a investigar os livros.
Com a caminhada a aproximar-se do fim, passamos pelo bairro das Carmelitas, que deve o seu nome porque lá havia o mosteiro, mais um, das Carmelitas Descalças. Agora há uma tentativa de lhe chamar o bairro dos livros, pelas livrarias e alfarrabistas da zona, mas também podia ter outro nome, uma vez que são cada vez mais os cafés e os bares que por ali nascem. Aliás, é por ali que acontece alguma da vida noturna da cidade. Germano Silva não nos deixa esquecer que, apesar disso, o bairro, construído nos anos 1920, tem a típica arquitetura arte nova, tão em voga na altura. E acrescenta, enquanto caminhamos à chuva pela Rua Galeria de Paris, “esta era para ser uma rua coberta como as galerias que existiam em Paris”. Mas tal nunca chegou a acontecer.
Ao virar da esquina, filas de turistas, que por vezes correm a Rua das Carmelitas abaixo. O motivo é simples: a Livraria Lello, que se tornou um dos grandes pontos turísticos da cidade e fonte de receita para os proprietários, que passaram a cobrar a entrada na loja.
Subimos à chuva, que não dá tréguas, para a zona da Cordoaria e ao lado da Torre dos Clérigos visitamos o café Porta do Olival, o mais antigo da cidade, datado de 1857.
Lá dentro uma das paredes é feita no que resta da muralha fernandina e da entrada da respetiva Portal do Olival. Também nas paredes vemos fotos da mais recente visita do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa ao local e uma placa com a história do café escrita pelo próprio Germano Silva. O mais difícil foi sair de lá sem consumir. Os donos, de simpatia portuense, não deixaram.
A finalizar a caminhada, e antes de espreitarmos o local onde era a antiga judiaria, um gueto ali criado por D. João I para os judeus que estavam bem integrados na cidade até terem sido expulsos pelo rei D. Manuel I, de dedo apontado para a barroca Torre dos Clérigos, Germano Silva explica-nos que uma das funções do monumento construído pelo arquiteto italiano Nicolau Nasoni era a de avisar os comerciantes dos barcos com mercadorias que estavam a um dia de distância do Porto. Depois de receber o telégrafo com o aviso, eram içados galhardetes no topo para os comerciantes estarem preparados para a mercadoria que aí viria desembarcar.
A nossa caminhada pelo Porto de Germano Silva termina dentro do Centro Português de Fotografia, onde era a antiga Cadeia da Relação do Porto, com dois propósitos, abrigar-nos da chuva, que não parava de cair, e uma penúltima história contada pelo nosso anfitrião. Ali estiveram presos Camilo Castelo Branco e a mulher, Ana Plácido, cada um na sua ala, mas com privilégios. “Camilo chegava a sair da prisão e ia comprar coisas para a mulher.”
Falou-se ainda do romantismo da cidade, do liberalismo e, antes da despedida, uma confissão: num recente encontro com o primeiro-ministro António Costa, na altura em campanha para as eleições legislativas deste ano, no meio de abraços, Costa contou-lhe ter visitado a cidade do Porto com a família guiado por Caminhar pelo Porto, um dos livros de Germano
Silva, claro.
FELIPE GIL / GERMANO SILVA ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL