Autor de um dos revolucionários ensaios dos anos dourados do Realismo Fantástico das letras latino-americanas, “Las Venas Abiertas de América Latina” (“As Veias Abertas da América Latina”), lançado em 1971, o escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940 – 2015), gostava de enfatizar, para retratar o caráter nacional de seu país, que a Montevidéu natal, ao contrário das grandes metrópoles das Américas e da Europa, antes de construir uma igreja e um palácio, teve um café – conforme artigo que publicou na edição de 17 de agosto de 1980 do diário francês Le Monde.
Mais que uma cafeteria, como hoje conhecemos, inspirada nos charmosos cafés de Paris, era, na verdade, um local no qual podia-se comprar de tudo, desde agulha, bebidas e panelas a um pacote de fumo. Algo parecido, talvez, com uma bodega portuguesa ou um almacén da Galícia, como são designadas as viejas mercearias pelos espanhóis daquela região, ao Norte de Portugal, que povoaram as Américas e, a partir do século passado, imigrariam em massa, principalmente, para Buenos Aires, Montevidéu, Havana e a baiana Salvador.
Essas mercearias costumam ser denominadas, igualmente, de pulpería em toda a Hispano América. Já os cafés, propriamente ditos, são uma tradição herdada dos povos islamizados de língua árabe que ocuparam por 700 anos a Península Ibérica, do século VII ao XIV, provenientes dos califados do Oriente Médio, como a síria Damasco, a iraquiana Bagdá e o egípcio Cairo, para além das imperiais cidades marroquinas de Tânger, Fez, Mèknes e Marrakesh.
As pulperias, decantadas por Galeano, existem, semelhantemente, na Espanha e também em Portugal. E foi de lá que veio esse tipo de comércio – misturando, em um mesmo endereço, bar, cafeteria e empório. Coube à Coroa de Lisboa a iniciativa do povoamento do atual território uruguaio, ao fundar o primeiro vilarejo do país, Colônia do Santíssimo Sacramento, em 1680, pelas mãos do alfacinha Manuel Lobo (1635 – 1683), então Governador da Capitania Real do Rio de Janeiro. O que explica os inúmeros sobrenomes portugueses, entre os quais, Pereira, Oliveira, Gonçalves, Borges, Abreu e Moreira.
Os lusos ergueriam, posteriormente, em 1723, a pioneira fortificação que deu origem à capital, Montevidéu, com o nome de São Felipe de Montevidéu. A expressão Montevidéu é uma corruptela de “monte viu eu”, frase que teria sido pronunciada pelo almirante português Fernão de Magalhães, em 1519, ao avistar as terras, na embocadura do Prata, durante a memorável viagem de Circum-Navegação. Seriam criadas ainda pelos enviados da Casa de Bragança, no mesmo período, as cidades de Maldonado, próxima a Montevidéu e vizinha a Punta del Este, e Rio Grande, porto gaúcho pertencente ao Brasil.
Outra marca deixada pelos lusitanos é a considerável presença da comunidade de afrodescendentes, originada, quase toda, dos negros levados da Bahia. Lisboa e Madri atravessariam o século XVIII peleando pela posse do Uruguai. O Reino Unido Portugal, Brasil e Algarves conquistaria, finalmente, a chamada Banda Oriental del Río de la Plata, em 1817, por determinação de O Clemente Rei Dom João VI (1767 – 1826).
Curiosamente, aliás, quando da proclamação da Independência do Brasil, em 1822, a Província Cisplatina, como foi rebatizada por Dom João VI, foi o único território que se manteve fiel à Metrópole, devido à firmeza de seu Governador-Geral, o lisboeta Carlos Frederico Lecor (1764 – 1836). A bandeira da Cisplatina permaneceu hasteada – com suas três listras: verde-branco-verde. A dinastia de Bragança estava representada pelo verde, enquanto o branco, a platina, tendo ao centro a Cruz de Cristo sob a esfera armilar.
Somente quatro anos mais tarde a Cisplatina passou a integrar o Brasil, porém, em 1830, o Imperador Dom Pedro I (1798 – 1834), O Libertador, filho de Dom João VI, negociaria a emancipação da setentrional província, pressionado pela Coroa da Inglaterra, que impôs a formação de um país entre o Brasil e a Argentina. As pulperías, ponto de encontro enaltecido por Galeano, se multiplicariam em torno do cais do porto, nas esquinas dos bairros da primorosa Ciudad Vieja.
ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)
Albino Castro é jornalista e historiador