Sigla lança documento filosófico
Novo chefe será Baleia Rossi
Partido definha no Congresso
O MDB (Movimento Democrático Brasileiro) lançou uma cartilha com as teses que o partido pretende usar para seguir em frente. É retórica pura. Quase 1 pastel de vento. Nada de prático e uma espécie de réquiem para 1 partido em grau avançado de obsolescência.
O documento (eis a íntegra) tem 2.975 palavras (fora o título e as frases em destaque). Foi produzido pela Fundação Ulysses Guimarães, uma espécie de “think tank” (sic) do MDB. Li palavra por palavra com cuidado e atenção. Os 2 slogans principais são: “Resistir mais uma vez” e “O desgoverno é a antessala da tirania”.
Num dos seus trechos mais contundentes, diz o seguinte:
“As ciências sociais nos ensinam que a tendência natural do ser humano é selecionar pessoas para ocupar cargos e funções públicas por laços de parentesco ou por trocas de favores. Compensar apoio eleitoral pelo fisiologismo, pelo nepotismo e pelo patrimonialismo.
“Todas estas formas de apropriação do poder devem ser combatidas. E, sempre que o combate a essas práticas perde vigor, a fiscalização e os controles diminuem e, naturalmente, a repatrimonialização retorna”.
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A chapa que o MDB deve eleger para comandar a legenda nacionalmente neste domingo (6.out.2019) tem 9 integrantes principais. Desses, 3 são filhos de políticos tradicionais. Os outros 6 estão na política, em sua maioria, há décadas.
Se isso não é “apropriação do poder”, o sentido da expressão teria de ser alterado.
Mas há 1 pouco de humor involuntário na sucessão interna do MDB. A chapa que disputa o comando do MDB nacional é única, não tem concorrentes, e foi batizada de… “Renovação Democrática”.
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Os 9 integrantes do grupo estão listados a seguir. É pedagógico clicar nos nomes para ir diretamente à ficha de cada 1 no banco de dados Políticos do Brasil, exclusivo do Poder360, e ler seus currículos eleitorais:
- Presidente – Baleia Rossi (SP), deputado federal;
- 1º vice-presidente – Confúcio Moura (RO), senador;
- 2º vice-presidente – Carlos Chiodini (SC), deputado federal;
- 3º vice-presidente – Daniel Vilela (GO), ex-deputado federal;
- secretário-geral – Newton Cardoso Júnior (MG), deputado federal;
- 1º secretário – Gabriel Souza (RS), deputado estadual;
- 2º secretário – Washington Reis (RJ), prefeito de Duque de Caxias;
- tesoureiro – Marcelo Castro (PI), senador;
- tesoureiro-adjunto – Raul Henry (PE), deputado federal.
E onde estão os nomes estelares do MDB? Renan Calheiros, Jáder Barbalho, Moreira Franco, Roseana Sarney e tantos outros? Passam em sua maioria a integrar o grupo chamado de “vogais” –integrantes da Comissão Executiva Nacional, com direito a voto e sem cargo definido.
Mas este texto é para detalhar o que o MDB propõe em seu documento de teses para o futuro da legenda. Não é muita coisa.
Capa do documento de teses para debate no MDB
O texto apresenta “3 pontos para debate”: 1) enfrentar a crise social; 2) combater a corrupção (“impede o desenvolvimento econômico, esta é uma verdade pacificada”) e 3) o compromisso com a democracia, a fé inabalável na liberdade e o sagrado respeito ao Estado de Direito.
E o que se propõe de prático a partir daí? Nada.
O texto da Fundação Ulysses Guimarães enaltece o governo de Michel Temer, cujo “obra ficou inacabada” por causa de “limitações do seu tempo de mandato”, do “grau de desalento da opinião pública” e da “crise moral que, de forma crescente, desde as denúncias do mensalão, se abateu sobre o sistema político-partidário”.
Para enfrentar a “crise social”, o texto emedebista fala em “rever os extremos da ortodoxia fiscal” para “combater a recessão para gerar empregos”. Faz 1 aceno para a esquerda ao dizer que “o mercado não cumpre esse papel”, mas ressalva que “mudar a rota não significa retornar ao populismo e nem à irresponsabilidade fiscal”.
Defende que a política econômica amplie a “oferta de empregos, a geração de renda e a criação de ferramentas de proteção social aos mais vulneráveis”.
Mas como? Não diz. Nessa aurora boreal de boas intenções e nenhuma proposta prática, conclui com uma platitude acaciana: “A medida de sucesso será dada pelos resultados obtidos”.
No trecho em que fala sobre a corrupção impedir o desenvolvimento econômico, o documento do MDB critica “privilégios e compadrio”.
A partir daí vem uma peroração com frases e ideias de Ulysses Guimarães (1916-1992), uma espécie de mestre Yoda do MDB, sempre invocado quando os atuais caciques da legenda não sabem exatamente o que dizer sobre algum tema.
“O poder não corrompe o homem, é o homem que corrompe o poder”, é a frase erroneamente citada como sendo exclusiva de Ulysses Guimarães. Na realidade, é uma adaptação de outra dita muito antes por Bernard Shaw (1856-1950): “O poder não corrompe os homens; mas os tolos, se eles adquirem uma posição de poder, eles a corrompem”.
Mas o que acaba demolindo esse trecho do documento do MDB não são autorias postiças de frases atribuídas a Ulysses Guimarães. O mais devastador são os trechos contra o nepotismo em cargos públicos, como já citado no início desta análise.
O 3º tema de debate é uma espécie de “patriotismo do MDB” (o último refúgio, como se sabe…), a defesa da democracia e do Estado de Direito.
Como não poderia deixar de ser, o documento da Fundação Ulysses Guimarães começa nesse capítulo citando… Ulysses Guimarães. A frase usada foi a proferida na promulgação da Constituição de 1988: “Temos ódio da ditadura. Ódio e nojo”.
É apropriado e necessário o tempo todo repelir a ditadura. Com certeza. Mas o que fez o MDB nos últimos anos a não ser desmoralizar o regime democrático ao patrocinar dezenas de governos incompetentes em cidades, Estados e no país? É 1 oximoro a sigla exaltar a democracia enquanto na vida real esmerou-se para solapar esse tipo de regime.
O texto afirma que o MDB deseja “reavivar seus compromissos com a democracia liberal”, embora mais acima tenha colocado em dúvida os valores do livre mercado e os cânones da economia ortodoxa.
Nesse trecho do documento, volta a defender que o Estado seja organizado com “quadros competentes e escolhidos de forma impessoal e com base no mérito de cada um”. Uma regra que parece não se aplicar ao próprio partido.
E como termina o texto? Com Ulysses Guimarães, claro. “O desgoverno, filho da penúria de recursos, acende a ira popular, que invade os paços municipais, arranca as grades dos palácios e acaba chegando à rampa do Palácio do Planalto”. E conclui: “O desgoverno é a antessala da tirania”.
Retórica nota 10. Mas prática e propostas são inexistentes no texto emedebista.
HISTÓRIA DO P/MDB
O MDB foi criado em 1966. O Ato Institucional nº 2 havia abolido 1 ano antes, manu militari, todos partidos políticos. Foi 1 crime de lesa-democracia.
Os generais do golpe de 1964, quase todos positivistas, gostavam do modelo bipartidário dos EUA. Decidiram que só duas novas legendas poderiam existir. O Movimento Democrático Brasileiro passou a ser a oposição consentida no Brasil. Os governistas de raiz aninharam-se na Arena, a Aliança Renovadora Nacional.
No fundo, era tudo a mesma coisa. Afinal, “oposição consentida” é uma contradição em termos.
No processo de volta lenta e gradual do país à democracia, o MDB foi surpreendido com uma nova exigência. Todas as siglas no retorno ao pluripartidarismo, no início dos anos 1980, teriam de ter a palavra “partido” no nome.
Era 1 truque ingênuo dos militares. Desejavam conter o avanço dos emedebistas, que mesmo no regime de exceção avançavam nas eleições consentidas. Sem o nome original, pensavam os militares, o MDB teria mais dificuldades para se dar bem nas urnas com a abertura democrática.
Obviamente, o MDB não caiu na armadilha. Virou PMDB e mandou muito na política brasileira. Desde as eleições para governadores de Estado em 1982 e até bem recentemente era “impossível governar sem o PMDB”, como se diz em Brasília.
Quando Muamar Kadafi (1942-2011) sucumbiu na Líbia, ouvia-se anedotas no Congresso. “Ele não tinha o PMDB para ajudá-lo”. O mesmo valeria para o conflito árabe-israelense. Palestinos e judeus deveriam recorrer ao PMDB para chegar mais rapidamente a 1 acordo de paz.
A vocação do PMDB no período democrático recente foi o conchavo, a traficância de bastidores, o arreglo. A sigla sempre achou que seria possível uma “saída por dentro”. Ruptura, jamais.
Tome-se o caso do tão festejado Ulysses Guimarães. Político profissional, deputado federal 10 vezes, gostava de ser chamado de “doutor”, tinha parcos conhecimentos sobre economia e organização do Estado (em 1991, nesta entrevista, recomendava ao governo nunca chamar alguém do mercado para trabalhar na administração pública). Sobreviveu por “default” dentro da sigla.
Muita gente se esquece, mas em 1964 Ulysses votou a favor do candidato único da ditadura, o marechal Humberto de Alencar Castello Branco, que se tornou o 1º presidente eleito de forma indireta depois do golpe de Estado. Sigla de Ulysses na época, o PSD deu o maior número de votos para o militar: 123.
Então deputado federal, Ulysses ajudou a redigir a primeira versão do Ato Institucional nº 1, que “legalizou” a tomada do poder por militares em 1964, depois da deposição de João Goulart, em 1964. O AI-1 também propôs e executou a cassação de mandatos de políticos democraticamente eleitos, com o apoio de Ulysses Guimarães.
Em 1973, havia 1 entendimento na oposição consentida: mostrar ao mundo como seria viciado o processo de escolha do próximo general-presidente no ano seguinte, em 1974. Ulysses foi nomeado pela oposição para ser candidato de mentirinha ao Planalto. O pleito era indireto. Quem venceria seria Ernesto Geisel.
A combinação em 1973 era fazer uma campanha austera, apontando a falta de liberdade. No final, em 1974, o candidato Ulysses e seu vice, Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), deveriam renunciar, acusando a inexistência de democracia. Mas Ulysses preferiu ficar candidato. Acabou, por vaidade pessoal, coonestando a eleição de Geisel.
Ulysses foi sobrevivendo com sua retórica dura, mas nunca radicalizando na prática contra a ditadura. Foi útil para os militares tê-lo como chefe de uma oposição consentida por tantos anos.
Quem analisa detidamente a história dificilmente encontrará uma fotografia perfeita da trajetória de Ulysses, que comandou o caótico Congresso constituinte em 1987 e 1988.
Eis 1 detalhe importante: Ulysses estudou direito na Universidade de São Paulo. No 2º ano, a aula à qual menos esteve presente foi a de direito constitucional. Ao final, teve média 7. Como se sabe, a redação da Constituição de 1988 foi confusa e permissiva, provocando décadas de baixo crescimento econômico no Brasil.
Os dados biográficos de Ulysses para esta análise foram retirados de uma extensa reportagem que produzi em 1989: “Há 60 anos Ulysses sonha em ser presidente da República”.
Já o MDB sempre foi 1 partido-ônibus que se beneficiou da onda democrática que tomou conta do Brasil na década de 1980. Nunca foi uma organização partidária clássica, com diretrizes nacionais e interesses comuns entre seus filiados.
Constelação de microssiglas, o MDB voltou a ter esse nome em 2017, abandonando o “P”, de partido. Não adiantou quase nada. A sigla continuou a definhar nas urnas, como mostram os quadros a seguir:
Rumo a se tornar 1 partido pequeno e com pouca expressão no Congresso, o MDB perde seu principal ativo: a força legislativa.
Note que o MDB é sempre dado como o grande fiador da volta do Brasil para a democracia, mas a legenda nunca conseguiu eleger 1 presidente pelo voto direto.
José Sarney assumiu o Planalto em 1985 apenas porque era vice de Tancredo Neves, ambos eleitos indiretamente. Michel Temer também assumiu o governo por ser vice de Dilma Rousseff. Itamar Franco foi do MDB, mas estava fora da legenda quando assumiu o Planalto após o impeachment de Fernando Collor, em 1992.
A potência do MDB sempre havia sido nas cidades e nos Estados, mas sobretudo na Câmara e no Senado. Com suas bancadas gigantes, tornava realidade a expressão “não se governa sem o MDB”. Ou uma variante: “Não se sabe quem será o próximo presidente, mas é certo que o MDB estará no governo”.
Agora, não mais.
Até abril e maio de 2019, nos corredores do Congresso era comum ouvir: “Espere. Já, já o governo de Jair Bolsonaro virá rastejando beijar a mão do MDB”. Não teve nada disso. Quem fazia esse tipo de análise olhava pelo retrovisor da política. Não que a fisiologia tenha acabado. Longe disso. Mas o MDB não é mais o dono do principal balcão. A sigla mais parece 1 taxista reclamando e resmungando contra a Über.
O MDB TAMBÉM CENSUROU
O documento da Fundação Ulysses Guimarães começa com a frase “resistir mais uma vez”. O fato é que o PMDB/MDB nunca resistiu a nada. Sempre foi oposição consentida na ditadura. Depois virou 1 pântano de fisiologia, abrindo a porta para quem desejasse entrar.
Sobre o MDB no poder, nunca é demais lembrar o que fez o então presidente José Sarney em fevereiro de 1986: censurou e proibiu o filme “Je vous salue, Marie”, do cineasta Jean-Luc Godard e lançado no ano anterior (1985) na França.
Sarney afirmou ter vetado a exibição no país com “base na Constituição”. Em nota divulgada no dia 4 de fevereiro de 1986, alegou ter tomado a decisão “para assegurar o direito de respeito à fé da maioria da população brasileira”. A decisão foi elogiada pelo então presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Ivo Lorscheiter, e pelo cardeal arcebispo do Rio, dom Eugênio Salles.
Para censurar “Je vous salue, Marie”, o presidente da República filiado ao MDB disse ter levado em consideração as palavras do papa João Paulo 2º e o pronunciamento da CNBB, que condenaram o filme por afrontar “temas fundamentais da fé cristã, deturpando e vilipendiando a figura sagrada da Virgem Maria”.
Em suma, essa história de resistência do MDB é uma espécie de autoengano freudiano que alguns emedebistas insistem em propagar, talvez para se purgarem dos erros que cometeram no comando da legenda.
A expressão “resistir” também pode ser uma referência involuntária à crise de abstinência pela qual o partido passa, alijado do governo federal e de muitas administrações estaduais e municipais. Viver sem fisiologia não é fácil.
Mas o documento do MDB também tem uma frase de autoajuda: “Sempre é possível avançar. Só́ depende de nossa combatividade”.
É verdade.
O MANIFESTO DE BALEIA
Post scriptum: no final da manhã de domingo (6.out.2019), o MDB divulgou o documento “Renovação Democrática é emprego e oportunidades”. Eis a íntegra. Assinado por Baleia Rossi, o novo presidente nacional da sigla, é uma espécie de “plataforma de governo” para a atuação da agremiação.
O manifesto de Baleia e o documento anterior da Fundação Ulysses Guimarães (analisado aqui acima neste post) são diferentes. O texto deste domingo é mais curto (tem 697 palavras). Avança com uma proposta de usar fundos constitucionais cujos recursos estão represados e sem uso. Eis a ideia:
“É preciso adotar medidas emergenciais para que o país sane as sequelas sociais da maior crise econômica da história. O MDB defenderá uma proposta de geração de empregos com fundos de desenvolvimento e fomentos já disponíveis.
“Com esses recursos e parceiras entre o governo federal e as prefeituras, será possível criar vagas para serviços de zeladoria, varrição e pequenos reparos nos 5.570 municípios brasileiros”.
Esse plano de Baleia Rossi remete a antigas frentes de trabalho oferecendo ocupação para desempregados miseráveis recuperarem estradas e executar outras tarefas braçais. É a volta do velho Estado nhonhô, que tudo provê e a todos ampara. É o patrimonialismo elevado ao paroxismo. O próximo passo seria voltar a distribuir cestas básicas, a festa dos políticos em regiões pobres do país. Em suma, trata-se da antítese do que às vezes o MDB sugere quando fala em democracia liberal para promover o empreendedorismo no Brasil.
Há também 1 aspecto que torna o uso dos fundos constitucionais quase inexequível. Seria necessário alterar a Carta e flexibilizar o teto dos gastos.
Em nenhum trecho do manifesto de Baleia Rossi sugere diminuir gastos públicos inúteis, como o mau uso dos recursos para dar aumentos sem limite de salários a funcionários públicos. Esta reportagem do Poder360 revelou dados estarrecedores: Gasto com o funcionalismo cresceu o dobro da inflação desde 2001.
O documento de Baleia Rossi tampouco menciona que os fundos constitucionais são em grande parte despautérios econômicos. Tome-se o caso de Brasília, a capital da República. Com 3 milhões de habitantes e quase 60 anos de idade, nunca se viabilizou e quase nada produz.
Para existir com o maior IDH e o maior PIB per capita, Brasília recebe 1 auxílio luxuoso de todos os brasileiros, o Fundo Constitucional do Distrito Federal. Em 2018, foi de R$ 13,7 bilhões. Neste ano de 2019, a proposta é que sejam torrados R$ 14,30 bilhões. É dinheiro de todos os pagadores de impostos sendo despejado no Distrito Federal. Detalhe relevante: Brasília é hoje governada por Ibaneis Rocha, que é do MDB.
O MDB poderia propor acabar com esses fundos, que produzem iniquidade no Brasil, com pobres do Norte e do Nordeste ajudando a financiar a riquíssima ilha da fantasia que é Brasília. Mas o manifesto de Baleia Rossi nem toca nesse tema.
Tudo considerado, o MDB não entende de onde veio e tem dificuldades para saber para onde deseja ir e como fazer com que o Brasil realmente se modernize.
FERNANDO RODRIGUES ” BLOG PODER 360″ ( BRASIL)