Uma das formas mais comuns de cometer erros na ação política consiste em errar nos diagnósticos, nas avaliações de conjuntura. Na sua essência, a política consiste numa atividade orientada para a conquista do poder ou para influenciar o exercício do poder. Não há política sem comando, sem liderança, pois se trata de uma atividade que visa conferir direção e sentido ao curso dos acontecimentos humanos no tempo. Os erros de avaliação se traduzem em erros estratégicos e táticos, o que implica na perda da capacidade de conferir direção e sentido ao curso dos acontecimentos. Geralmente, as forças políticas que cometem esses erros terminam por assumir posições defensivas e mergulham na apatia, na incapacidade de agir, de organizar e de mobilizar. Este é o quadro sinótico da situação das oposições ao governo Bolsonaro.
As oposições não conseguiram fazer nem avaliações sérias e profundas das razões que levaram à vitória de Bolsonaro e nem conseguiram faz um diagnóstico preciso da natureza do seu governo. A avaliação inicial de alguns partidos e analistas consistia em apontar que o Brasil estava caminhando para a constituição de um governo fascista. Trata-se de um claro equívoco. O que caracteriza o fascismo consiste na existência de um movimento fascista que usa a violência política sistemática para a conquista ou manutenção do poder. Nem o PSL é tal movimento e o que se convenciona chamar de bolsonarismo é um conjunto de grupos e indivíduos informes. O fato de Bolsonaro esposar algumas ideias fascistas não autoriza a conclusão de que se está diante de um governo fascista.
Outra tese equivocada que circula em várias análises é a de que o governo Bolsonaro se encaminha para uma ditadura de tipo militar. Não há nenhuma evidência, nenhum fato, nenhum movimento que respalde tais avaliações. Nem há disposição ou inclinação no alto comando das Forças Armadas no sentido de avalizar tal aventura. Não é disto que se trata, evidentemente.
Os próprios líderes da extrema-direita, em vários países, vêm proferindo discursos em defesa da democracia e denunciam como riscos potenciais à mesma os partidos e líderes de esquerda, o socialismo, o comunismo, Cuba, Venezuela etc. Foi isto que Bolsonaro fez com seu discurso na ONU. Onde a extrema-direita governa, aparentemente, não há ameaças de interrupção dos processos eleitorais.
Como as oposições se perderam nas avaliações, não conseguem se achar na ação. Passados nove meses desde o início do governo elas não sabem ainda qual frente formar, em que frente participar, se formam uma frente e qual a forma da frente. Muitas das avaliações davam pouco tempo de vida a Bolsonaro na presidência. Ele seria substituído polo vice. O governo já teria acabado nos dois ou três primeiros meses. A reforma da Previdência não seria aprovada e por aí vai.
Então, o que se vê hoje nos governos e nos líderes da extrema-direita é uma defesa da forma da democracia enquanto agem para esvaziar o seu conteúdo. Na medida em que o conteúdo da democracia já vinha sendo esvaziado por governos de centro e de centro-esquerda, a centro-direita teve seu caminho facilitado e decidiu percorrê-lo sem as sutilizas e boa educação dos governantes de punho de renda. A extrema-direita decidiu agir de forma mais grotesca e grosseira, sem as boas maneiras, sem os discursos politicamente corretos, sem as mediações das velhas instituições democráticas decadentes e corrompidas.
Os governantes da extrema-direita, ao colocarem o enferrujado sistema de mediações num segundo plano, decidiram agir como bonapartistas digitais, estabelecendo uma relação direta com o eleitorado, com o povo, atacando os parlamentos e a mídia tradicional. Trump e Bolsonaro são dois típicos bonapartistas digitais.
O Brasil, a rigor, nunca teve uma democracia efetiva pelos critérios clássicos de sua definição. Alexis de Tocqueville, no seu clássico “A Democracia na América”, identificou a igualdade como o principal de distintivo valor da democracia. Igualdade nos vários aspectos: perante a lei, igualdade de oportunidades, igualdade como senso reduzido das diferenças, igualdade como equidade etc. Este sempre foi o grande problema da democracia brasileira.
A extrema-direita age para esvaziar o conteúdo da democracia nos seguintes pontos: aumentando as desigualdades, reduzindo os direitos sociais e trabalhistas, atacando direitos de liberdade e direitos de minorias, estabelecendo aparelhamento e intromissão nos sistemas de controle do Estado, esvaziando os sistemas de controle e de participação popular a exemplo dos conselhos participativos, atacando a legitimidade das ciências e das universidades em nome de valores conservadores, agredindo manifestações cultuais humanistas e universalistas em nome de um nacionalismo tanto xenófobo quanto falso e assim por diante. Em suas ações de esvaziamento do conteúdo da democracia os governos de extrema-direita contam com o concurso ora do Judiciário, ora do Legislativo.
Com a democracia esvaziada em seu conteúdo, esses governantes agem como déspotas. A possível existência de um despotismo na democracia, ao que se saiba, foi cogitada, antes de todos, por Tocqueville ao elencar os possíveis males em que poderiam incorrer a democracia e a igualdade. A mediação do poder central sem corpos intermediários era apontada por ele como uma das características principais do despotismo na democracia. De fato, Bolsonaro não esvaziou apenas os conselhos participativos, mas bloqueou a participação de todas as instituições da sociedade civil – dos sindicatos às ONGs passando por instituições tradicionais como a OAB, a CNBB etc.. A sociedade civil brasileira sempre foi gelatinosa. Agora está liquefeita, amorfa.
Sem organizações ativas e sem mobilizações, as pessoas permanecem isoladas, mergulhadas na sua própria solidão, sem potência para lutar. O capitalismo anárquico pós-moderno, constituído por multidões de indivíduos todos estranhos uns aos outros, favorece o despotismo na democracia. Tocqueville afirma que esse despotismo não é tão violento como o antigo. É mais suave, mas mais extenso: “degrada os homens sem atormentá-los”. É mais de tutores do que de tiranos. Mas esses tutores querem fazer valer sua vontade absoluta.
Para combater o mal do despotismo, Tocqueville aponta para algumas saídas. O exercício da liberdade política. A liberdade política não é algo que deve estar apenas garantido nas leis. Não há liberdade política sem atividade, sem participação e sem mobilização dos cidadãos. Existem duas formas para fazer isto: 1) pela participação no poder local, como municípios, bairros, prefeituras regionais etc., 2) pela participação nas entidades da sociedade civil como sindicatos, associações culturais, de bairro, organizações de vários tipos, partidos políticos.
No Brasil, as duas coisas vão mal. Não há uma tradição de participação e de controle no poder local. Este também é um poder esvaziado em face da hipercentralização do poder no plano federal. Por outro lado, como se disse, a sociedade civil sempre foi gelatinosa. Boa parte das organizações e associações que existem são aparelhadas por interesses de pequenos grupos. Os partidos estão sequestrados por burocracias incompetentes que defendem privilégios, tanto os seus quanto os privilégios incrustrados no Estado brasileiro. Somente a juventude, com novos movimentos, com novas bandeiras, com novas lutas, pode romper este sistema passivo, omisso e conivente com o capitalismo predatório vigente no Brasil.
ALDO FORNAZIERI ” BLOG 247″ ( BRASIL)
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).