Sob o império norte-americano, o cinismo e o retrocesso – Parte I
Os instrumentos de linguagem utilizados presentemente na guerra híbrida para dominação psicológica de países vulneráveis foram desenvolvidos a partir da década de 1920
por Nilson Lage
Quando Woodrow Wilson reuniu grandes empresários no Conselho de Relações Exteriores, em 1917, pretendendo preparar os Estados Unidos para gerir o espólio do então decadente Império Britânico, destampou um boeiro de onde jorraram ambições desmedidas e palavras mentirosas. As ambições levaram em uma dúzia de anos ao craque de 1929, à depressão e ao parêntesis histórico do New Deal; a intromissão na linguagem e nas formas jurídicas conduziu a uma espécie de fascismo legal e retórico cuja evolução é paralela e coerente com a experiência alemã, em particular a de Joseph Goebbels à frente do magnífico Ministério da Informação do regime nazista.
Franklin Roosevelt, que governou sob o New Deal — intervenção anticíclica, keynesiana, na economia — foi o último estadista a presidir o país, sucedido por governantes sempre menores do que ele. Democrata e lúcido, reescreveu a Doutrina Monroe com uma política de associação não hegemônica na América, a “boa vizinhança”: negociando com Getúlio Vargas, com quem se dava bem, comprometeu-se a promover a industrialização brasileira, com a construção da primeira grande siderúrgica estatal e o planejamento de investimentos futuros pela Comissão Mista Brasil-Estados Unidos. Os recursos não vieram e os planos foram implementados no possível, com verbas públicas, no segundo governo Vargas, sob feroz oposição dos Estados Unidos.PUBLICIDADE
Enquanto Roosevelt devolvia o entusiasmo e esperança a seu povo nos anos da depressão, plutocratas ambiciosos conspiravam e o discurso protofascista se enriquecia graças a notáveis avanços na pesquisa sobre a aferição da opinião pública e, particularmente, o efeito dos meios de comunicação de massa.
Patrocinada por magnatas da indústria, como Singer ou Colgate, a oposição a Roosevelt agitou bandeiras da suástica e concentrou esforços no apoio à candidatura presidencial do empresário Wendell Wllkie, derrotado em 1940 por uma diferença de cinco milhões de votos. Era o inédito terceiro mandato sucessivo do presidente, a que se seguiria o quarto, em 1944.
Com a morte do novaiorquino Roosevelt, em 1945, um mês antes da rendição alemã, assumiu o governo o vice-presidente, Harry Truman, reacionário sulista do Missouri, que, não apenas determinou o bombardeio atômico de cidades populosas no Japão, mas também saudou o feito como “grande avanço da humanidade”; iniciou a guerra fria; abriu espaço para a perseguição da inteligência americana no macartismo — em suma, alimentou o reflorescimento do ideal imperialista associado à mística do “destino manifesto”.
No Brasil dos anos 1950, além de apoiar a conspiração que levou ao suicídio o Presidente Getúlio Vargas e conduziu ao golpe de 1964, os Estados Unidos atuaram com vigor para demolir instituições da cultura local, objetivando o controle dos meios para a “fabricação do conhecimento”. Dois exemplos são a música e o cinema.
A produção musical erudita brasileira, liderada pela originalidade de Heitor Villa Lobos, era interessante, mas a música popular nos anos 30-50, esta, rivalizava em riqueza e, pela diversidade, superava a congênere dos Estados Unidos. Ao comprar as principais gravadoras de discos, os norte-americanos suspenderam a prensagem dos suplementos de carnaval e meio-de-ano, desfechando uma crise que se agravou com a campanha contra versões de letras e as orquestras brasileiras.
A reação local foi de perplexidade. A invasão de boleros produzidos em escala industrial e veiculados com insistência — como, até hoje, a pior música pop dita “internacional” — provocou o surgimento de uma linha “abolerada” de sambas-canção, na série da “fossa” (Antônio Maria, Dolores Duran -nome artístico de Adiléia da Rocha) e de artistas que tentavam tornar ritmos locais palatáveis aos novos donos do pedaço, seja na imitação do sotaque e andamento dos blues (como é o caso do cantor Dick Farney, Farnésio Dutra e Silva), seja partindo do modelo harmônicos do jazz em busca de uma expressão cosmopolita da canção urbana brasileira, o que deu origem, com êxito, à bossa-nova.
No caso do cinema, a intervenção foi ainda mais brutal. As jovens produtoras de filmes implantadas em São Paulo no imediato pós-guerra, estúdios modernos, com técnicos imigrados da Europa, foram sufocadas pelo monopólio da distribuição internacional, por intensa campanha midiática de descrédito e pelo boicote pelos exibidores em rede do país. O filme ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes, “O pagador de promessas”, obra do diretor Anselmo Duarte, foi retido por dois anos sem distribuição, até a falência da produtora, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz.
Era amostra do que o imperialismo americano faria nas sete décadas seguintes, com uma variedade de meios que conduziu à realidade atual das guerras híbridas — muito além de Sun Tzu e Clausevitz.
As palavras e a arte da guerra
Os instrumentos de linguagem utilizados presentemente na guerra híbrida para dominação psicológica de países vulneráveis foram desenvolvidos a partir da década de 1920, atualizando e potencializando recursos da retórica clássica, descritos por Aristóteles e aperfeiçoados pelos tribunos e juristas romanos.
O ponto de partida, tanto na Alemanha quanto nos Estados Unidos, foram duas obras produzidas na década de 1890 fora do meio acadêmico, A Multidão criminosa, de Scipio Sighele, e Psicologia das Massas, de Gustave Le Bon. Ambas testemunham o clima de rancor na tensa sociedade europeia do fim do século XIX, época em que parte da população migrava para outros continentes e a recessão era mantida pela hegemonia do império inglês e a imposição do arrocho financeiro, em causa própria, pelos grandes bancos; refletem remotamente o pessimismo filosófico da época — o imperativo biológico da competição entre os homens em Herbert Spencer, a prioridade do sofrimento em Artur Schopenhauer; e a degradação do homem e de suas instituições, em Friedrich Nietszche. Fazem, finalmente, eco aos avanços da psiquiatria e à crescente preocupação com a proximidade entre a loucura e a criminalidade, principalmente em Cesare Lombroso.
Os Estados Unidos nas primeiras duas décadas do Século XX estavam em plena expansão industrial e isso se refletia em sua cultura, que se destacava pelos estudos e aplicações da Lógica e da Pragmática. Sob o impacto (indireto, mas evidente) do Positivismo Lógico, escritores e jornalistas — reagindo, esses, aos exageros e mentiras da imprensa sensacionalista — buscaram expressar-se em linguagem enxuta, sem adjetivos testemunhais e construída com conceitos menos manipuláveis, que são usualmente os mais usuais. Praticavam, para isso, a crítica semântica e condenavam pela ambiguidade as estruturas sintáticas elaboradas.
A objetividade e o cientificismo na linguagem midiática praticada por eles foi um dos obstáculos encontrados pelos publicistas que trataram, a partir de 1917, de convencer o público norte-americano a consentir, inicialmente, com a entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial; depois, com a necessidade de levar adiante a doutrina do destino manifesto da década de 1840 — a suposta missão divina atribuída ao governo americano — não mais, vinculado à Doutrina Monroe, visando à dominação de toda a América, mas para a coquista econômica, financeira e militar do mundo.
A superação do objetivismo da linguagem no âmbito dos formadores de opinião, viria quando Henry Luce e acadêmicos da Universidade de Yale acrescentaram à secura do texto padrão, em 1922, na revista Time, adjetivação constituída basicamente de palavras de origem latina incomuns na fala corrente em inglês — o que empresta aos enunciados aparência de profundidade e sofisticação –, bem como a estratégia de descrição detalhada de cenários e episódios, selecionados conforme versões interesseiras não expressas.
Os enfeitiçadores de mentes
Quanto à operação publicitária (e propagandística) em si, os textos básicos para quem estuda o assunto são os livros Opinião Pública, de Walter Lipmann, de 1922, e Propaganda, de Edward Bernays de 1928. O primeiro define o objetivo de “fabricar o consenso” (ou o consentimento “manufactuting consent” foi a expressão escolhida por Noham Chomsky e Edward Herman para título de seu livro sobre a economia política dos meios de comunicação de massas, de 1988, hoje clássico nos estudos de controle de opinião pública.
Lippmann teve longa e premiada carreira jornalística (criador da expressão “guerra fria”, morreu em 1874), mas Bernays é protagonista eleito para essa história, por vários motivos. Filho do casamento do irmão de Sigmund Freud com a irmã da mulher dele (portanto, duplamente sobrinho), baseia sua estratégia publicitária agressiva principalmente no comportamentalismo (behaviourismo) de John Watson (explicação do comportamento como resposta a estímulos), na rejeição da racionalidade do homem comum e na instituição de uma relação de poder tal que a coletividade se submeta à vontade de alguns homens, mediante o controle da mídia e de suas mensagens. Expressamente, assegura que, dispondo dos necessários conhecimentos e recursos midiáticos, é possível “fazer os homens agir contra seus próprios interesses”.
Essa visão é perfeitamente compatível com a do Ministério da Informação do regime nazista, com que os publicistas americanos mantiveram íntimo contato até o início da Segunda Guerra Mundial; e se ajusta ao conceito de verdade de Martin Heidegger em seu artigo “Sobre o conceito da verdade”, redigido e modificado várias vezes pelo autor ao longo da década de 1930. Nele, Heidegger inverte uma proposição de Isaac Isareli, filósofo platônico do Século IX — “verdade é a íntima adequação do enunciado à realidade” (adequatio intellectus ad rem) — e a inverte, de modo que a verdade passa a ser também a adequação da realidade ao enunciado que expressa a vontade “de alguns homens”.
Entre os feitos mais notórios de Bernays está a extensão do vício de fumar às mulheres, em uma campanha de 1929, e a campanha de experimental de “relações-públicas” (ele é chamado de “o pai das relações-públicas”) que, a serviço da CIA, deu cobertura ao golpe contra o Presidente Jacobo Arvbenz, da Guatemala, em 1954 — ato inaugural de um período de 40 anos de guerra civil na qual morreram perto de 200 mil pessoas e que bagunçou a economia do pais até hoje. Esse foi também o primeiro de uma série de golpes promovidos pelos Estados Unidos na América Latina — o mais recente deles, em 2016, no Brasil, com ampla utilização de recursos oriundos dos ensinamentos de Bernays.
Embora utilizasse amplamente e parentesco com Freud para benefício da própria imagem, a psicologia freudiana tem aplicação secundária, se alguma, na estratégia de propaganda que Bernays concebeu. Ele intentou buscar lastro em Ivan Pavlov, mas o neurofisiologista russo que descreveu os reflexos condicionados fez questão de desmentir tal relação: em seu último discurso a um congresso de trusquiaria, em 1932, afirmou que a relação automática adquirida entre estímulo e resposta, constatada em mamíferos superiores, não pode dar conta do comportamento dos homem porque a espécie humana “é dotada de linguagem, com a qual construiu a ciência e a arte”.
A retórica da propaganda de Bernays aproxima-se mais do universo simbólico desvendado por Carl Jung e da construção de alavancas de persuasão como, no caso da promoção do cigarro entre as mulheres, a voga das sufragistas. Vincula-se ainda o nome dele a experiências com a comunicação subliminar.
NÍLSON LAGE ” JORNAL GGN” ( BRASIL)