Uma das mais prestigiosas publicações do Oriente Médio, The Jerusalem Report, editada em língua inglesa, reunindo o pensamento progressista das correntes do Sionismo, perguntou aos seus eruditos leitores, na edição de 24 de junho último, qual país do mundo, para além de Israel, onde a revista é editada quinzenalmente, possui, neste momento, um judeu na Presidência da República, e, imediatamente abaixo dele, como Primeiro Ministro, outro seguidor da fé hebraica.
A resposta certa, porém, surpreendente, é a milenar Ucrânia, cujo Presidente, Volodymyr Zelenski, de 41 anos, foi eleito com 73 por cento dos votos, e Volodymyr Groysman, também de 41 anos, nomeado Primeiro Ministro do novo governo. A Ucrânia era um reino pagão convertido no século X ao Cristianismo pela sua fervorosa Rainha Olga (890 – 969), A Bela, que é santa, para os católicos e ortodoxos, sendo evangelizadora da Rússia, à época, uma imensa província de Kiev.
A chegada ao poder dos dois Volodymyr assinala uma mudança na sociedade ucraniana – num país tristemente notabilizado pelo antissemitismo, marcado por malditos pogroms, ou seja, o assassinato de inteiras povoações judias, estendendo-se até a Segunda Guerra (1939 – 1940), quando, ocupado pelas tropas da Alemanha, uma parte da população aderiu à ideologia nazista do Führer Adolf Hitler (1889 – 1945).
Foi justamente por causa dos pogroms, praticados igualmente na Rússia, que os pais judeus da maior das escritoras brasileiras, Clarice Lispector (1920 – 1977), em 1922, fugiram para o Brasil. Desembarcaram em Maceió, na qual passaram os três primeiros anos, mudando-se, depois, para Recife e, posteriormente, Rio de Janeiro – onde ela chegou aos 14 anos. Os seus pais, Pinkhas e Mania, eram russos, bem como as duas irmãs mais velhas – Elisa, também escritora, e Tania.
É considerada, com justiça, não só a melhor literata brasileira, mas, para alguns estudiosos das letras judaicas, o principal autor, entre homens e mulheres, depois do desaparecimento do tcheco Franz Kafka (1883 – 1924), nascido em Praga, na região da Boemia, sob a dinastia do iluminado Império Austro-Húngaro dos Habsburgo de Viena. Talvez ela só possa ser comparada, entre as escritoras do idioma de Luís de Camões (1524 – 1580), à portuguesa Agustina Bessa-Luis, que escreveu A Sibila (1954) e A Muralha (1957), morta, aos 96 anos, na sua amada cidade do Porto, no dia 3 de junho.
Clarice Lispector viveu bem menos que Agustina Bessa-Luis e morreu um dia antes de completar 57 anos. Escreveu, contudo, muitas obras – como a celebridade tripeira. A estreia da ucraniana aconteceu em 1943, aos 23 anos, com Perto do Coração Selvagem. O título foi pinçado de uma frase do irlandês James Joyce (1882 – 1941), celebrado pelo monumental Ulisses, de 1922, extraída de seu segundo livro, em 1916, Retrato do Artista Quando Jovem, festejadíssimo, como Dublinenses (1914) e Finnegans Wake (1939). Clarice Lispector publicaria, depois, O Lustre (1946), A Cidade Sitiada (1949), Laços de Família (1960), A Maçã no Escuro (1961), A Paixão Segundo GH e A Legião Estrangeira (ambas em 1964), Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969), Água Viva (1973), A Hora da Estrela (1977) e, postumamente, em 1978, Um Sopro de Vida.
Autora de grande fôlego, cujo nome em russo era Chaya Pinkhasovna, é, sem dúvida, a mais brasileira das ucranianas. Teve vida intensa na imprensa carioca, como articulista e crítica literária, nas redações da Agência Nacional, inicialmente, e, na sequência, nos diários A Noite, A Manhã, Correio da Manhã e Jornal do Brasil. Colaborou ainda com a arrojada revista semanal Manchete, criada em 1952 pelo gráfico ucraniano Adolpho Bloch (1908 – 1995), também judeu, que, como a família Lispector, fugiu em 1922 para o Brasil, fixando-se no Rio de Janeiro – escapando, assim, do atual país dos Volodymyr, então, uma das 15 repúblicas da União Soviética.
Clarice Lispector continua atual e intempestiva. Acaba de ser publicado ensaio atribuído a ela no caderno dominical Aliás, de O Estado de S. Paulo, no dia 14 de julho, sobre o russo Máximo Gorki (1868 – 1936), ícone do ‘realismo soviético’ e da nomenclatura stalinista – autor do épico comunista A Mãe. O ensaio da ucraniana teria sido encontrado no acervo da paulistana Biblioteca Mário de Andrade. Trata-se de louvação a Gorki, definido por ela, no ensaio, como o romancista que a comoveu na adolescência. O texto publicado não está datado. Mas parece indicar, por ironia, a simpatia pelo regime que fez os Lispector debandarem da Rússia.
ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)
Albino Castro é jornalista e historiador