PRECISAMOS CONVERSAR MUITO MAIS, ERNESTO !

CHARGE DE DUKE


Logo no início de seu depoimento biográfico, publicado em 1992, o General Ernesto Geisel, o mais interessante dentre os protagonistas políticos do regime militar, faz o elogio dos professores. Lembrando de sua época de estudante no Colégio Militar de Porto Alegre, comenta: “Acho que o êxito do colégio residia no prestígio deles. Hoje o professor não tem salário, não tem status social, faz greve e o ensino vai-se deteriorando. Não é com cieps nem com ciacs que se vai resolver o problema.”

Concordo plenamente quanto aos professores. Não me lembro bem do grupo escolar em que estudei durante a Segunda Guerra Mundial, mas não me esqueço da professora, Dona Alaíde, nem do dia em que ela, elegante em traje de festa, nos fez cantar para um casal de visitantes hino que começava (curioso, achei a palavra no dicionário) falando de crianças: “Alons enfants…”; os franceses, altos, de cabelos brancos, choraram e isso me impressionou tanto que, sem entender, chorei também. Depois, no Colégio Militar do Rio de Janeiro, descobri porque choraram e guardo agradecida memória dos mestres que me ensinaram isso, e outras coisas.

Não apenas nesse aspecto temos algo em comum. Minha mãe, Julieta, como a Sra. Geisel, geria com maestria orçamento familiar modesto, o que, nas condições da época, exigia acúmulo de talentos e vigor. Os alimentos não vinham empacotados, mas a granel, e se estragavam; as galinhas tinham que ser alimentadas, depenadas e degoladas antes de ir para a mesa, em dias especiais; as roupas eram modeladas, costuradas e lavadas em casa, no tanque, com sabão em barra; carvão em brasa enchia o ferro de passar, preto e pesado; lustrava-se a cera do assoalho com um esfregão que eu, menino, não tinha força para empurrar e esfriava-se a geladeira com gelo que chegava em barras, pingando ao sol do calor carioca.

Ainda assim, mães eram a doce escala necessária para as crianças terem acesso a seus desejos. As moças atualmente dizem que nossas mães eram escravas de nossos pais; eles e elas, há muito falecidos, ficariam perplexos se ouvissem tal coisa: o timing e a divisão de trabalhos na sociedade doméstica eram mais perfeitos do que em qualquer linha de montagem.


Também como o senhor, só comecei a conhecer de fato meu pai na adolescência– por pouco tempo, porque morreu, e desde então, em nossas conversas de homem, só eu que falo.

Mas o que gostaria, mesmo, de dizer, caro Ernesto, é que todos erram e nossos maiores erros resultam de que só vemos o que nos é mostrado. Daí, permito-me, em humilde assessoria, informar-lhe que há equívoco nessa sua opinião sobre cieps e ciacs. Sei porque minha experiência foi diferente da sua: andei sempre mais abaixo na escala social, e mais ao Norte. Meu pai era filho de um casal português que aqui chegou, aí por volta de 1870, com um pé na frente, outro atrás, e minha mãe descendia de índios.

No contato com o entorno social, acompanhei a transformação que ocorreu desde quando se descobriu que, postas a trabalhar em empregos antes masculinos, as mulheres, não só dobravam a oferta de mão de obra preservando a mesma massa de salários, como ampliavam o mercado para a indústria de alimentos, confecções, cosméticos e eletrodomésticos.

Daí que os homens ficaram menos responsáveis e elas, as da classe trabalhadora, só se libertaram no campo do imaginário. As famílias fragmentadas, que havia muitas na nossa infância, hoje são muito mais. Mães tornaram-se entes distantes, que se abraça à noite — e a rua está aí, o dia todo, com seus pecados. No mundo em que transito, para dar um exemplo bem marcante, o trabalho livre das mulheres é como o daquela jovem que, na butique, maquiada e espremida no vestido justo, permanece de pé, com as mãos no ar porque é proibido apoiar-se no balcão, e sorri, o dia todo, o mesmo sorriso. Ela se aperta porque só pode ir ao banheiro duas vezes por dia e não a deixam usar fraldas porque atrapalharia o perfil de sereia disponível.


Como alimentar, de pão e bens do espírito, as crianças, em tal pobreza? Numa época em que os adultos precisam de academias para se exercitar e até de doulas para gerir a prenhez, não há como dispensar equipes profissionais que cuidem dos brasileirinhos para que eles, ao crescer, saibam construir um país mais justo e humano do que esse, em que a obra do meu general em benefício de nossa pátria — o petróleo sob o mar, a Embrapa, a indústria pesada, a política externa independente — vem sendo demolida, dia a dia, como tudo mais, sem piedade e sem esperança.

NÍLSON LAGE ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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