O primeiro número do Diário Carioca circulou um ano antes do craque da bolsa de Nova York e dois anos antes da Revolução de 1930. Seu fundador, José Eduardo de Macedo Soares, ex-oficial da Armada, ex-deputado, civilista mas autor de uma biografia de Saldanha Marinho louvada por décadas na Marinha, lançara antes O Imparcial, jornal em que escreveu Rui Barbosa, o civilista-mór.
De 18 de julho de 1928 a 31 de dezembro de 1965, quando a velha máquina rodou o último número na Rua de São Bento, a poucos metros da Avenida Rio Branco, perto da Praça Mauá, o Diário Carioca acompanhou a política brasileira, quase todo tempo na oposição. “Era um jornal de posições políticas definidas, que nenhum político deixava de ler”, disse Carlos Castello Branco, que foi chefe de redação.PUBLICIDADE
Em 1950, o proprietário do Diário, Horário de Carvalho Júnior – que o comprou ou recebeu de presente de Macedo Soares, em 1932 – , construiu, com empréstimo do banqueiro Walter Moreira Sales, um prédio moderno e feio na Praça Onze, no Rio, e investiu por alguns meses em muitas páginas, para muitos leitores e muitos anúncios. Mas isso durou só ano e meio: o edifício da Érica foi vendido a Samuel Wainer, da Última Hora, que o comprou com dinheiro emprestado do Banco do Brasil.
Tirando esse curto período, o Diário Carioca jamais tentou parecer um grande jornal; no entanto, manteve-se influente, pelo menos até a conspiração que levou à deposição de João Goulart. O Rio de Janeiro já não era, então, capital da República; já não gerava os fatos políticos nacionais, restando-lhe apenas repercuti-los. Vargas suicidara-se em 1954 e o trabalhismo se decompunha. A União Democrática Nacional, cuja fundação, em 1945, fora tramada no Diário, quando Carlos Lacerda era seu chefe de redação (por pouco tempo) esfacelava-se também e logo se dissiparia na esteira do golpe de 1964.
A articulação da ação militar desfechada em 31 de março e completada em 1º. de abril envolveu ações de diferentes níveis, com suporte técnico e diplomático dos Estados Unidos e apoio financeiro de empresas, principalmente multinacionais. Contou com pesquisas de opinião pública e de mercado, que eram novidade na época. Promoveu a produção de relatórios otimistas sobre o suposto esquema militar que daria suporte ao governo. Corrompeu oficiais, principalmente na Intendência, para que, no caso de resistência armada, faltassem insumos necessários, como a gasolina dos carros de combate. Procedeu ao levantamento de informações e ao estudo da psicologia dos principais comandantes, nos quais se identificaram fragilidades, como o ressentimento do General Castelo Branco, que não julgava reconhecidos seus méritos; as ambições financeiras do General Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército; ou a lealdade frágil do General Amaury Kruel, em quem tanto confiava o esquema montado no Planalto pelo General Assis Brasil. Projetou ações futuras, destinadas a manter sobre bases conservadores a inevitável modernização do país.
A unidade militar foi quebrada com a infiltração de agentes no movimento dos praças da Marinha e do Exército, cuja inserção em pequenas insurreições e a busca de alianças com sindicalistas radicais buscava evidenciar a quebra da hierarquia, base de qualquer força armada. Provocadores, inseridos na vida sindical, amplificavam o discurso dos setores que pressionavam o governo como se houvesse condições para um movimento socialista à moda cubana, e nisso obtinham o apoio ingênuo da jovem intelectualidade oriunda da recente experiência brasileira de industrialização.
Para organizar o esquema de imprensa que difundiu as informações adequadas e sonegou as inconvenientes, montou-se uma estrutura em parte centrada na Assessoria de Comunicação da Light, empresa canadense cujo holding estava na mira do Governo por repassar a suas subsidiárias com juros altos empréstimos que recebia com juros baixos ou a fundo perdido. Na direção da assessoria, um udenista típico – golpista, portanto – , Odylo Costa, filho, que fora diretor de redação do Jornal do Brasil; na execução dos textos, entre outros, Rubem Fonseca, ex-policial treinado nos Estados Unidos, e Nélida Piñon, fervorosa católica a quem o Concílio Vaticano II abalara profundamente. Agentes nos principais jornais. Algo muito além da política artesanal que impulsionara o Diário Carioca, posto à margem do que se passava.Leia também: Da Universidade do Brasil ao Diário Carioca: as origens do texto objetivo no jornalismo brasileiro de notícias, por Nilson Lage
Até então, em todos os eventos políticos nacionais, o Diário atuara, não só como instrumento mas, frequentemente, como participante da intrigalhada política. Foi essa presença que garantiu sua sobrevivência como jornal pequeno, em um meio jornalístico que, lentamente, dependendo embora de injeções periódicas de dinheiro (público ou privado), adquiria o formato de indústria, com pretensões à grandeza e à megalomania.
Um clube sem estatutos
Além dos proprietários principais – Macedo Soares e Carvalho Júnior – o jornal teve dois outros donos por curtos períodos – Arnon de Melo e Danton Jobim. Foi empastelado uma vez por militares que participavam do movimento tenentista, quando rompeu com Getúlio Vargas, em 1932. Habitou quatro prédios, na Avenida Rio Branco, perto da Cinelândia; na Praça Tiradentes; na Praça Onze; e, finalmente, na sobreloja da Avenida Rio Branco, 25. Hospedou várias redações, a primeira delas com figuras de relevo na época, como Humberto de Campos, Virgílio de Melo Franco, Evaristo de Morais, Maurício de Lacerda, Marcial Dias Pequeno e Paulo Mota Lima – na maioria vindos de O Imparcial.
Durante o Estado Novo de Vargas (1937-1945), quando a imprensa recebia subsídios e instruções diretas do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), geralmente sem reclamar (houve exceções, como O Estado de S. Paulo, que esteve sob intervenção), o Diário Carioca desobedecia freqüentemente ao script e dava dores de cabeça ao governo.
Por exemplo, quando o DIP encomendou aos jornais que criticassem o governo inglês porque um avião da Força Aérea Britânica (RAF) disparara uma rajada de metralhadora contra um cargueiro brasileiro que se dirigia à Itália, Macedo Soares criou uma associação sem sede nem estatutos, o Clube dos Diretores e Principais Redatores de Jornais do Rio de Janeiro, que promovia almoços mensais – o primeiro deles, no dia seguinte à publicação do editorial de encomenda, justamente ao embaixador da Inglaterra, Sir Noel Charles.
Em outra oportunidade, Macedo Soares exercitou a crueldade de seu estilo ao reportar-se a uma entrevista do Almirante Amaral Peixoto, genro de Getúlio e conhecido pela pouca ou nenhuma experiência marítima: “Falando ontem a bordo do couraçado Minas Gerais, solidamente amarrado ao cais da Ilha das Cobras, o Almirante Amaral Peixoto …”
Macedo Soares tinha experiência em correr riscos. No dia do empastelamento, em 1932, escapou porque tinha ido a Petrópolis, participar do jantar de aniversário de Afrânio de Melo Franco. Anos antes, ainda deputado, levou um tiro de outro parlamentar, o gaúcho Flores da Cunha: embora os homens de fronteira tivessem a fama de boa pontaria, a bala apenas lhe perfurou o chapéu de palha.
A ‘maioria absoluta’
Em 1950, o Diário Carioca mantinha sua aversão histórica a Getúlio Vargas, que seria eleito com maioria significativa. Não apoiava, no entanto, o candidato udenista, Brigadeiro Eduardo Gomes; ficou mesmo com Cristiano Machado, candidato do Partido Social Democrático que teve votação pequena, traído pelos oligarcas que diziam apoiá-lo. A traição política gerou um verbo de uso comum nos meios políticos durante a década seguinte: ‘cristianizar’.
A vitória de Getúlio levou o jornal de novo à oposição radical. Pompeu de Souza (Roberto Pompeu de Souza Brasil) e Prudente de Morais Neto, que dirigiam a redação, tiraram da manga a tese da maioria absoluta, obtendo a concordância oral de ministros do Tribunal Superior Eleitoral e – o que era mais importante, do Ministro da Guerra do governo de Eurico Gaspar Dutra, General Canrobert Pereira da Costa. Foi preciso uma declaração conjunta dos generais Estilac Leal e Zenóbio da Costa para, desautorizando Canrobert e desestimulando os juristas do TSE, assegurar a posse tranqüila do novo presidente.
“Que farão agora os generais no dia de sua posse?”, perguntou um repórter a Getúlio. Ele pensou um instante e respondeu: “Baterão continência”.
A ‘república do Galeão’
Em 4 de agosto de 1954, sábado de madrugada, Deodato Maia, secretário de redação, deu carona a Armando Nogueira, redator do Diário, até sua casa, na Rua Tonelero, em Copacabana. Eles se despediam quando ouviram tiros. Ao levantar a cabeça, instantes depois, Armando viu-se a poucos metros de dois corpos; o de um major da Aeronáutica, Rubens Vaz, que morreu, e o de Carlos Lacerda, ferido no pé. Era o estopim de uma série de episódios que levaram Getúlio Vargas ao suicídio.Leia também: Da Universidade do Brasil ao Diário Carioca: as origens do texto objetivo no jornalismo brasileiro de notícias, por Nilson Lage
O atentado da Rua Tonelero teve imediato aproveitamento político. Já no domingo, os jornais – à exceção de Última Hora, que permaneceu fiel ao presidente – estampavam novo manifesto daquele clube quase fictício criado por Macedo Soares. Redigido por Pompeu de Souza , que colheu as assinaturas por telefone, o texto apontava o Governo Federal como principal suspeito do crime, advertindo que os “diretores e principais redatores” não aceitariam o resultado do inquérito policial se não o acompanhassem de perto. O Ministro da Justiça, Tancredo Neves, acatou a exigência.
Pompeu foi o homem destacado para acompanhar o inquérito que terminaria incriminando Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio, como mandante do atentado. Ao mesmo tempo, era também o contato jornalístico dos oficiais que instauraram, na Base Aérea do Galeão, inquérito policial militar – a chamada “república do Galeão” – para apurar ‘casos de corrupção no governo’. Embora tais irregularidades jamais tivessem sido comprovadas, e não haja registro de que Getúlio tenha obtido, em alguma época, benefícios financeiros do poder, a imprensa hostil, liderada pela Tribuna da Imprensa, jornal de Lacerda, denunciava a existência de um ‘mar de lama’ no Palácio do Catete, sede do governo, onde hoje funciona o Museu da República.
O ‘sentimento do medo’
Parece estranho que, após a participação ativa nesse movimento subversivo, o Diário Carioca partisse para apoiar, logo no ano seguinte, a candidatura de Juscelino Kubitschek, cujo desenvolvimentismo é geralmente considerado uma espécie de continuação da política de transformação econômica do Brasil desfechada por Getúlio Vargas. Terão pesado, aí, ligações pessoais de Macedo Soares e, principalmente, de Horácio de Carvalho Júnior que, como logo se veria, tinha muito a ganhar.
Carlos Castello Branco conta que, quando o Presidente Café Filho disse a Juscelino que sua candidatura teria sido vetada ‘pelos militares’, ele procurou Macedo Soares. Este o encorajou e redigiu um pronunciamento em que há uma frase de efeito que ficou famosa: “Deus poupou-me do sentimento do medo”.
Durante o governo de JK, esvaiu-se a última esperança de que o Diário crescesse para tornar-se uma empresa economicamente viável. Horácio de Carvalho Júnior guardou para si os bônus da vitória eleitoral, deixando aos empregados do jornal o ônus dos salários atrasados. Mas foi o período mais interessante do ponto de vista da técnica jornalística.
Anos de decadência
No governo de Jânio Quadros, o Diário Carioca voltou por breve período à oposição, mas já sem Castello Branco, que se tornou secretário de imprensa do presidente. No dia seguinte à renúncia de Jânio, Pompeu de Souza, que ocupava um cargo de direção, demitiu-se porque Arnon de Melo, político udenista a quem Horário de Carvalho Júnior vendera a empresa, modificou um editorial pedindo a posse imediata do vice-presidente, João Goulart.
Engajado nas articulações para impedir o sucesso do golpe articulado pelos três ministros militares, Pompeu de Souza aproximou-se de Goulart a ponto de ser convidado a participar do governo, como assessor de imprensa do primeiro-ministro, Tancredo Neves. Extinto o parlamentarismo, decidiu dedicar-se à implantação do curso de jornalismo da Universidade de Brasília, no espírito da renovação acadêmica pretendida por Darcy Ribeiro.
A essa altura, Arnon de Melo já havia se desinteressado pelo jornal, que vendeu a Danton Jobim. Não havia mais espaço para um veículo essencialmente político como aquele, que, ao romper com sua tradição udenista, em 1955, tornara-se peça chave na campanha eleitoral de Juscelino Kubitschek.
A conspiração era a mesma de sempre, mas se desenvolvia, agora, em instituições especializadas como o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, secretariado por Golbery do Couto e Silva) e o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática, de Ivan Hasslocker). O desenvolvimentismo juscelinista parecia interromper-se na fúria da caça às bruxas e, ao retornar como política de Estado, anos depois, viria sob o império de um regime de força.
O Diário circulou por algum tempo e balbuciou protestos, nos dias difíceis que se seguiram ao golpe de 1964. Em 1965, Horácio de Carvalho Júnior o recomprou, com a intenção evidente de fechar o jornal e manter a posse do título.
Os anos do Diário Carioca foram, enfim, extraordinários pela intensa disputa ideológica dos anos 30, seguidos de uma guerra mundial e, depois, de um período de fortes tensões, a guerra fria. Em meio a tanta turbulência, o Brasil encontrou o caminho da modernização sem conseguir, no entanto, quebrar o poder das oligarquias, que sempre retornam, como em um brinquedo de joão-bobo. Mas foram também características notáveis da época a constância das futricas políticas, mais visíveis então do que são hoje; a transformação profunda da economia rural e da paisagem urbana, em que se gestava a tragédia social; o clima de esperança nunca visto que animou a população brasileira nos anos 50; o trânsito, enfim, da ditadura civil de Getúlio Vargas ao que parece ter sido o único período histórico em que o Brasil conciliou um tanto de democracia e um tanto de independência.Leia também: Da Universidade do Brasil ao Diário Carioca: as origens do texto objetivo no jornalismo brasileiro de notícias, por Nilson Lage
A modernização do texto
O Diário foi a pequena alavanca que impulsionou a reforma do texto na imprensa diária brasileira, antecipando de uma década e meia a modernização de O Globo, dos jornais paulistas e, a partir desses, da imprensa das outras regiões. Entre a reforma do DC e a febre de renovação formal que acompanhou a pobreza de conteúdo nos anos que se seguiram ao AI-5, coube ao Jornal do Brasil, já aí no contexto da grande imprensa, herdar o texto moderno, somando a ele a diagramação arrojada – mas essa é, no entanto, outra história, ou outro capítulo da mesma história.
Se a reportagem, essa coisa melhor do jornalismo, deu o tom na renovação dea imprensa de São Paulo — graças, principalmente, à revista “Realidade”, lançada em 1966 pela Editora Abril, de Victor Civita — uma coisa se perdeu nesse transporteda técnica de redação de notícias, do Diário até a Folha ou o Estadão: o humor. Desde o repórter Mauro de Almeida que, no início da década de 1930, inventou com absoluta irresponsabilidade a história do mineiro que comprou um bonde, até os leads irreverentes de José Ramos Tinhorão (“O fogo entrou em cena, ontem, ao fim do primeiro ato, para um espetáculo à parte no Teatro Recreio …”), o DC criou um estilo, muitas vezes ácido, poucas vezes inocente.
“O bom humor dava personalidade e graça ao jornal”, conta Pompeu de Souza, ele memo um sujeito nada engraçado ou espirituoso.. “Éramos uma equipe muito exigente no estilo, talvez porque estivéssemos imbuídos de certo espírito de causa: estávamos revolucionando a imprensa.” Talvez se possa complementar observando que o texto cuidado e criativo compensava, de certa forma, uma apuração falha, além de personalizar o noticiário padronizado que saía das ‘salas de imprensa’, fábricas de press-releases que ainda não tinham esse nome.
No período áureo, na década de 1950, lá trabalharam – além de Danton Jobim e Pompeu de Souza, que tiveram atuação política –, Carlos Castello Branco, Luís Paulistano, Evandro Carlos de Andrade, Nilson Vianna, Jânio de Freitas, José Ramos Tinhorão e muitos mais — elenco onhecido pela competência profissional do que pela capacidade conspiratória — exceto na maldade de Nelson Rodrigues, porta-voz de Roberto Marino, que os apelidou de “idiotas da objetividade”.
Essa é uma contradição implícita na história do Diário Carioca: era uma empresa frágil e mal dirigida, que sequer experimentou um tanto de prosperidade quando seu dono, Horácio de Carvalho Júnior, empreiteiro de obras públicas, ganhou de presente fantástica recompensa por intermediar junto a Juscelino Kubitschek a concessão do quadrilátero ferrífero a um cliente; no entanto, foi nela e exatamente que o jornalismo começou a se profissionalizar.
Pompeu de Souza e Luís Paulistano foram mais atuantes no início da década. “O centro de gravidade do Diário Carioca se dividia entre Pompeu e Paulistano”, conta Armando Nogueira. “Mas, enquanto Pompeu nos ensinava a escrever de forma amplificada, aos gritos, Paulistano preferia a conversa reservada.” Mais tarde, o comando efetivo da redação passaria a Castello Branco: Paulistano foi trabalhar no Jornal do Comércio (morreria, em desatre de helicóptero, qujando assessor do governador do Estado do Rio, Roberto Silveira, em 1961) e Pompeu, com cargo de direção, pouco aparecia por lá.
NÍLSON LAGE ” JORNAL GGN” ( BRASIL)