Em delírios de grandeza, imaginávamos provar ao mundo que é possível a convivência de raças e comportamentos, dar-se bem com os vizinhos, distribuir riqueza e prosperar em paz.
A universidade pública brasileira é octogenária, tem minha idade; na verdade, até menos.
[Universidades são instituições diferentes de faculdades isoladas e não se devem confundir com escolas comuns, de qualquer nível. Suas duas características distintivas são a vocação para produzir, não apenas reproduzir, conhecimento; e a concentração nos mesmos campi de diferentes perspectivas no enfoque da realidade. A confusão se deve a que a legislação brasileira nomeia como “universidade”, por conveniência, o que, de fato, não é.]
A fundação da Universidade do Brasil, atual UFRJ, em 1920, foi ato formal que incorporou instituições isoladas preexistentes, com destaque para a Faculdade de Medicina, de 1808, e a Escola de Engenharia, oriunda da Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, de 1792; a universidade mesma só se implantaria após a reestruturação comandada pelo Ministro Gustavo Capanema, em 1937, com o aporte de professores europeus.
Fundada em 1934 a Universidade de São Paulo demorou a acomodar instituições prestigiadas, como a Escola Politécnica ou a Faculdade de Direito; ganhou impulso como produtora de conhecimento após a Segunda Guerra Mundial e o fim do Estado Novo, estabelecendo vínculos maiores com universidades norte-americanas.
A Universidade do Distrito Federal, atual Uerj, foi criada por Anisio Teixeira em 1935.
Para termo de comparação, a Universidade de São Marcos, no Peru, e a Universidade Real e Pontifícia do México, atual UNAM, foram criadas em 1551 para confrontar as avançadas culturas inca, asteca e maia¹. Várias universidades árabes e europeias existem há mais de mil anos.
Tivemos pouco tempo. Herdamos cultura-reboque, dinástica e burocrática, envergonhada com a própria realidade — geográfica, étnica, ideológica. A lenta (e incompleta) tomada de consciência revela-se na Antropologia de Nina Ribeiro e Artur Ramos, hoje tão criticada; na relação com as culturas indígenas, decorrente do humanismo de Cândido Mariano Rondon; ou na reflexão sobre as peculiaridades sociais do país, em Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Josué de Castro ou Ignácio Rangel.
Nessas oito décadas, alcançamos feitos extraordinários.
Fomos buscar petróleo em rochas carboníferas por debaixo do piso de sal dos mares; infelizmente, outros as explorarão. A partir do projeto do Instituto Tecnológico da Aeronáutica, de Casemiro Motenegro Filho, conseguimos fabricar aviões melhores do que os europeus e americanos; pena que a Embraer não mais nos pertença. Da produção científica do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e do empenho teimoso dos cientistas da Marinha , de Álvaro Alberto a Othon Luiz Pinheiro da Silva — hoje encarcerado –, resultou o desenvolvimento de tecnologia própria de enriquecimento de urânio; acordos absurdos nos impedem de aplicá-la em escala industrial. Obtivemos resultados extraordinários em agricultura tropical, com a Embrapa, e em planejamento e recursos de saúde pública, com a Fiocruz — instituições ambas ameaçadas pela mediocridade reinante, a mesma que asfixia e censura a arte. Nossa engenharia de infraestrutura — barragens, rodovias, portos — incorporou tecnologia de ponta e erguia pelo mundo obras de excelente qualidade; a pretexto de moralizar o país, lamentavelmente, a assassinaram.
No período da vida de um homem, construímos portentoso sistema universitário e iniciamos a abertura de vias de acesso a ele, disponíveis a toda a população. Embalados, nos últimos 15 anos, em um salto de qualidade, apostávamos na juventude para a superação dos desencantos de nosso passado. Em delírios de grandeza, imaginávamos provar ao mundo que é possível a convivência de raças e comportamentos, dar-se bem com os vizinhos, distribuir riqueza e prosperar em paz.
Parece que não vai acontecer, por ora. Há lições, no entanto, a extrair no atual desmonte de tudo:
Primeiro, que não existem, em nosso meio, caminhos alternativos ao modelo social-democrata que resultou do casamento de ideias positivistas com a doutrina social da Igreja Católica. Ao criar a USP, a oligarquia paulista, derrotada pela Revolução de 1930, pretendia, nas palavras de Sérgio Miliet, “mudar as concepções econômicas e sociais dos brasileiros” — isto é, confrontar o movimento tenentista e o trabalhismo que dele resultaria, liderado por Getúlio Vargas. Foi uma campanha de décadas, sempre retomada: deu nisso ai.
Segundo, como ouvi, certa vez, do Presidente Geisel — ele mesmo tentando levar avante tal projeto inviável –, “o Brasil não tem amigos”. Da próxima vez, se houver, teremos que nos fortalecer na certeza de nossa identidade única, e nos armar para dissuadir (a Coreia do Norte é notável exemplo); entender, também, que há enorme diferença entre importar conhecimentos em Física ou Química e tomar por verdade, sem crítica, o que os outros generosamente nos oferecem em matéria de Direito, História, Economia ou Geopolítica.
¹ Antes, em 1538, bula papal de 1538 criou, na atual República Dominicana a Universidade de São Tomás de Aquino, sancionada pelo rei de Espanha vinte anos depois. Em 1866, ela passou a se chamar “Instituto Profissional” e, hoje, Universidade Autônoma de Santo Domingo, com campi em diversas cidades do país.]
NILSON LAGE ” ( JORNAL GGN” ( BRASIL)