Enquanto dedilhava seu violão em busca do som perfeito, da batida única, João Gilberto conheceu a autora nas ruas de Diamantina. Um colóquio, uma dança, uma confidência… E nunca mais se viram
Pode o caro leitor não acreditar, mas agora é a segunda vez que perco João Gilberto. É seu direito, claro, pensar que tudo quanto escrevo se inscreve entre as miríades de lendas que cercam o criador da Bossa Nova. Mas aconteceu, de fato, quando eu tinha 14 anos e morava em Diamantina.
Os que curtem cinema e bossa nova devem ter assistido ao documentário de Georges Gachot, no qual o cineasta segue o escritor Marc Fischer, autor do livro “Hobalala”, por todos os lugares do Brasil onde pudesse haver um rastro, um testemunho que mostrasse quem efetivamente foi João Gilberto. Esse documentário — “Onde está você, João Gilberto” —, de 2018, revela o lado escuro do artista, que sempre me lembrou a face oculta da Lua.
João já era assim, quando apareceu em Diamantina. Perambulava pela descida da rua do Colégio Nossa Senhora das Dores, onde morava sua irmã, e caminhava até a Baiúca, o bar situado na famosa capistrana, no qual se encontrava com amigos seresteiros da boemia dessa Macondo mineira.
No meio do caminho, sempre às quatro horas da tarde, uma parada próxima ao coreto, de frente para o fórum. Era quando nos encontrávamos.
Eu era a filha do severo juiz de Direito, que não poderia nem sonhar que sua filha se encontrava, todas as tardes, com alguém que fora parar em Diamantina para “esquecer a maconha”. Era assim que se dizia, à época, à boca pequena, explicando porque João estava naquela cidade, na casa de sua irmã.
Ficávamos a jogar conversa fora por umas duas horas. Todos os dias.
À noite, diziam, o rapaz, então com seus 26 para 27 anos, tocava, tocava sem parar seu violão, buscando um acorde, um som, uma batida que ninguém nunca ouvira, nem vira nem sabia se existia. João passava a madrugada tocando violão no banheiro da casa de sua irmã, ao rés do chão do sobrado, um daqueles sobradões divididos por duas famílias.
Diziam que ele se escondia ali para não incomodar os vizinhos de cima. Mas como não incomodar, se ele tocava, tocava e retocava os mesmos acordes, repetidas vezes, noites sem conta, dia e noite?
Velha gravação de vídeo de que ainda disponho mostra a roda de seus amigos noturnos, lembrando cada uma de suas (dele) esquisitices, como a de prender o dedo mínimo ao anelar da mão esquerda com um elástico, desses elásticos comuns, para obrigar o “mindinho” também a tocar… Ah, como me lembro dessas doideiras da cabeça dele!
Assim, ficamos amigos, ele lá arengando na minha cabeça coisas de outros mundos onde a menina nunca estivera e ela a rir, rir, rir, morria de tanto rir com aquele sujeito tão diferente dos seus amigos diamantinenses. Inclusive pela idade. Ele era aproximadamente 13 anos mais velho que ela.
Quase sempre, enquanto conversávamos, ou melhor, enquanto ele falava e eu escutava, passavam pela rua meus conhecidos, ou minhas conhecidas, meninas em flor, tão bonitas quanto era Lílian Antunes, a filha de Dona Teresa, as duas mulheres mais bonitas da cidade para meu gosto.
Um dia, à queima roupa, João me diz: “Estou apaixonado por uma menina”. E eu, de bate-pronto: “Hoje tem hora dançante em frente da casa do Mário Miranda, todo mundo vai estar lá. Por que você também não vai?”
Na hora dançante, quando chego – antes das oito, por certo, pois às dez horas tinha de estar de volta em casa – ele lá já se encontrava. Viu-me e foi logo me tirando para dançar.
E me sussurrou ao ouvido: “Estou apaixonado por você”. Minha cabeça rodou, rodou e tanto rodou que, meu irmão mais velho e eu perdemos a hora de chegada. Cinderela viraria abóbora. Meu pai pôs-me de castigo por um mês inteiro: um mês inteiro sem por os pés na rua. João, nunca mais…
Passados dois dias, à tarde, no mesmo horário de sempre, ouço uma batida de violão tocado e cantado na mureta em frente de casa: rua Macau de Baixo, 120. Pela fresta da janela vejo que era ele…
Eu parecia uma daqueles moças que se podiam entrever por detrás dos muxarabiês que foram incorporados à arquitetura colonial diamantinense. João deve ter notado que eu o vira.
Continuou a cantar, apenas para mim, por algumas semanas seguidas. Concertos e mais concertos de João Gilberto só para mim!
E meu pai, o severo juiz, de sua sala no fórum, querendo ir lá fora mandar “aquele vagabundo”, e , ainda por cima, dizia ele, “desafinado”, cair fora e parar de incomodar os que tinham que despachar processos ou, do outro lado da rua, fazer os deveres de casa.
Um dia, João sumiu… Nunca mais o vi…
Até que, meses depois, chegou a Diamantina o primeiro exemplar do disco “Chega de Saudade”. Que já era sucesso tocado sem parar nas rádios.Quase desmaiei: aquele era o meu João. João Gilberto era o meu João.
E nunca mais o vi. Agora, posso perguntar, sem medo de errar: para onde foi você, João Gilberto?
SANDRA STARLING ” BLOG OS DIVERGENTES”” ( BRASIL)
* Sandra Starling é advogada e mestre em Ciência Política pela UFMGDeixe seu comentário