AH, INSENSATEZ, CORAÇÃO MAIS SEM CUIDADO


João Gilberto durante gravação em um estúdio, em uma foto com a data desconhecida. HULTON ARCHIVE GETTY IMAGES

Em tempos de grosseria oficializada, estamos desperdiçando a delicadeza e a ideia de um país, no particular e no social clube

Só entendi o que era ser um macho egoísta, grosseiro, que não presta atenção no que pode magoar uma pessoa, quando Beth, uma ex-namorada, me fez derreter a cera da canalhice juvenil dos ouvidos com uma belíssima indireta. O fusca atravessava a ponte da Capunga, no Recife, sentido centro-subúrbio, primeira metade dos anos 1980, quando ela colocou o cassete no toca-fita do carro e uma canção me fez entender que estava desperdiçando aquele momento de delicadeza.

O relacionamento durou pouco, mas a lição ficou na vitrola do juízo e rola até hoje, como toque de alerta diante de uma possível incivilidade amorosa ou social. A canção, seu João, era Insensatez (Tom Jobim & Vinícius de Moraes), mas só doeu porque era interpretada do teu jeito baiano de leseira brisa de Juazeiro. Ao teu modo, delicadíssima agulha sobre as dores do mundo, vinil Bossa Nova que gira ao infinito. Ah, insensatez que você fez, coração mais sem cuidado…

Não é só dizer, é o jeito de dizer, duvido que de outra forma, senão ao modo João, eu teria me tocado e aquilo mudaria o disco das ações da existência. Não é só dizer, ninguém tocou do seu jeito, um violão, uma cartilha, um manual, o curso madureza completo de educação sentimental etc. Síncope. Esse modo João só o Rômulo Fróes, na próxima cerveja, me explica.

Sigo no mote. No particular e no social, a insensatez é o que pega. Estamos desperdiçando os amores e a ideia de país. “Ah, porque você foi fraco assim?/ Assim tão desalmado”, minimaliza João, na ponte entre o passado e o futuro. Ser fraco assim é o que pega, no estágio mortal de elogio à ignorância e à destruição em que vivemos.

No social e no particular, só a atenção salva. O cantor e compositor Jards Macalé comia a farinha do desprezo, ali nos meados dos anos 80, queria partir dessa para outra, se despedia dos amigos, no que ligou para o chapa João Gilberto. “Macala, vem pra cá, quero te mostrar uma coisa”, ouviu do gênio.

O quarto estava escuro. Na penumbra, ele conseguiu identificar João, sentado num canto. “Macala, deita aqui, com as pernas pra lá”, disse o baiano, apontando para um sofá grande e confortável. Macalé deitou, como se estivesse no divã de um psicanalista. João Gilberto pegou um violão e começou a tocar “No Rancho Fundo”, de Ary Barroso e Lamartine Babo: “No rancho fundo/ de olhar triste e profundo/ um moreno conta as mágoas/ tendo os olhos rasos d’água…”.

Quem nos conta essa história, com precisão e aspas pontuais, é o jornalista e diretor de TV/Cinema André Barcinski no livro Pavões Misteriosos (editora Três Estrelas, SP, 2014). Vale seguir o fio da delicadeza joãogilbertiana: “Ele tocou por horas, foi uma coisa hipnotizante”, lembra Macalé. “Eu comecei a ouvir aquela música e fui relaxando, relaxando, me deixando levar, até que apaguei.”

Macalé dormiu profundamente, relata, quando acordou, no dia seguinte, João Gilberto estava à sua frente, lhe oferecendo um café. “O sol entrava pela janela do apartamento, e toda a tristeza tinha desaparecido de mim. Foi uma coisa profundamente humana o que o João fez. Ele percebeu que eu estava numa pior e usou o que tinha à mão, a música, pra me ajudar.” Onde me queres misantropo, sou humaníssimo, assim costumam agir os bichos estranhos do mundo.

De música em música, uma resposta ao nosso tempo, no que chegamos ao clipe novo do Emicida (com Majur e Pablo Vittar), julho do ano da graça de 2019. Silêncio, há um pedido de socorro ao telefone, talvez na madruga, há desespero, depressão corre solta na buraqueira. Emicida dá a fúria do sol como resposta, é bonito.

Um pouco antes, o rapper havia mandado a sina: “Eu sonho mais alto que drones/ Combustível do meu tipo? A fome/ Pra arregaçar como um ciclone (entendeu?)/ Pra que amanhã não seja só um ontem com um novo nome/ O abutre ronda, ansioso pela queda (sem sorte)/ Findo mágoa, mano, sou mais que essa merda (bem mais)”.

Emicida, então, solta o sample de outro rapaz latino americano que entendia deveras de canções desesperadas: “Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro”. É Belchior no seu alto-falante.

Ah insensatez, que você fez, coração mais sem cuidado, se liga no norte, no rumo, SP gelada, 8 graus, café quente, pão na chapa, sístole & diástole, Irene brinca, Téo vê Stranger Things, Larissa me aquece em mais um inverno.

XICO SÁ ” EL PAÍS” ( ESPANHA / BRASIL)

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Big Jato” (editora Companhia das Letras), entre outros livros. Comentarista do programa “Redação Sportv”.

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