É duro e frustrante, para não usar um adjetivo mais forte, ouvir o presidente da República defender o trabalho infantil em detrimento do estudo e do conhecimento
O presidente Jair Messias Bolsonaro nos acostumou, em seu meio ano de governo, a todas as surpresas e loucuras. A última, no entanto, em sua live de quinta-feira, causou um certo espanto, ao defender o trabalho infantil com estas palavras: “O trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade” — que evocam a trágica lembrança do campo de concentração nazista de Auschwitz, um lugar infernal onde as crianças eram sacrificadas nos fornos crematórios. Na entrada do campo de extermínio está escrito, em alemão: “O trabalho dignifica o homem”.
O presidente não esconde seu desejo de descriminalizar o trabalho infantil, que não é permitido pela legislação brasileira. Ele só não vai fazer isso, explica, “porque seria massacrado”. Os argumentos do presidente para defender seu desejo de descriminalizar o trabalho infantil são de uma superficialidade assombrosa: “Quando um moleque de nove, dez anos vai trabalhar em algum lugar, tá cheio de gente aí [dizendo] ‘trabalho escravo’, não sei o quê, ‘trabalho infantil’. Agora quando tá fumando um paralelepípedo de crack, ninguém fala nada”.
O presidente absolve o trabalho infantil, que significa, sem dúvida, abandonar a escola, com uma lembrança de sua infância, quando aos nove, dez anos de idade, trabalhava em uma fazenda no interior de São Paulo, colhendo milho. “Não fui prejudicado em nada”, afirmou, dando a entender que para as crianças de hoje não seria nenhum drama se tivessem permissão para trabalhar, algo que vai na contramão de toda a pedagogia e práxis dos países civilizados. Hoje o trabalho infantil, que rouba o tempo de estudo das crianças, é considerado um crime contra os direitos da infância.
Essa tentação do presidente Bolsonaro de descriminalizar o trabalho infantil, algo que recorda os tempos da escravidão, fez com que eu me lembrasse de uma das primeiras entrevistas que fiz aqui no Brasil quando era correspondente deste jornal. Como filho de dois professores primários, uma de minhas preocupações ao chegar a este país era conhecer a situação do ensino.
Assim, fui a Brasília conversar com o então ministro da Educação, Paulo Renato Souza, que considero um dos grandes artífices do novo ciclo educacional do país. O ministro dominava perfeitamente o espanhol, e mais do que uma entrevista, aquele encontro acabou sendo uma reflexão sobre qual tinha sido no passado, e ainda era no presente, o problema das escolas brasileiras. “Para que você entenda o problema com o qual estamos lutando, tem de saber que há menos de 40 anos ninguém colocava em discussão que a escola era apenas para os filhos dos ricos. Os pobres, que seriam a maioria, deviam trabalhar como seus pais”, assinalou. E acrescentou: “Como sempre foi”.
Daí que a primeira revolução da educação deste país foi quebrar o tabu de que a escola e o conhecimento eram um direito para poucos privilegiados e abrir caminho para saldar uma dívida histórica com os filhos dos pobres, condenados a perpetuar a tragédia do analfabetismo de seus pais e a trabalhar desde crianças. Para isso, um dos primeiros esforços, disse o ministro, foi o de “levar todas as crianças” à escola. Como em muitos casos aquelas crianças pobres precisavam trabalhar para ajudar a família a sobreviver, nasceu o Bolsa Escola, criado por aquele que seria o primeiro ministro da Educação do Governo Lula, Cristovam Buarque. Consistia em uma ajuda econômica às famílias que se comprometessem a levar os filhos à escola.
Como me disse então o ministro Souza, com o ensino já acessível a todos, o passo seguinte era oferecer uma escola de qualidade, que entusiasmasse e motivasse as crianças a superar seus pais, em vez de tentá-las a abandoná-la ainda no ensino básico, por falta de interesse e de motivação.
Hoje, a quase 20 anos de distância, aquele sonho dos pioneiros da educação de acabar com os resquícios da escravidão para que nenhuma criança chegasse à maturidade semianalfabeta, é duro e frustrante, para não usar um adjetivo mais forte, ouvir o presidente da República defender o trabalho infantil em detrimento do estudo e do conhecimento.
Uma única criança que precise trabalhar em pleno século XXI para poder ajudar seus pais analfabetos é não só uma vergonha para um país rico e moderno como o Brasil, como também uma blasfêmia na boca de um presidente que se diz chamado por Deus para “mudar os rumos desta nação destroçada” pelo fantasma da esquerda que ele e suas hostes inventaram.
JUAN ARIAS ” EL PAÍS” ( ESPANHA / BRASIL)