“Como são tristes as coisas vistas sem ênfase”, escreveu Carlos Drummond de Andrade na “Rosa do Povo”. Se deixarmos de atribuir sublimidade e sentido à experiência, não haverá futuro, sonhos ou projetos, só uma verdade parcial, mecânica, estéril.
São operações de desnudamento desse gênero que explicam a aliança de grupos tão contraditórios de criaturas no conglomerado de forças que assumiram o poder no Brasil. Em todos os casos, toma-se por norte um objetivo imediato e por verdade uma aparência sensível, como quando se diz que a Terra é plana porque, olhando o horizonte, não dá para perceber sua curvatura.
Em teoria da História, chamavam isso de materialismo vulgar. Aqui, em versão caricatural.
O dono do bordel paulistano ou o ator aposentado de filmes pornográficos veem o sexo reduzido a exercício de excitação e gozo: não há porque prezar aquele que se usa em sua prática O desejo de possuir conduz, na reprimida fantasia das prisões ou das trincheiras,à tentação de ser possuído, tão abominável que se disfarça na insistência da representação anal nos insultos.
Não espanta que o deus dessa cambada seja desprovido de divindade, negocista que vende paz e milagres na capitalização dos dízimos. Os gerentes dos bazares dessa fé descobriram que “igreja” significa “comunidade” e que o pertencimento é o conforto dos desgarrados, que são muitos; enriqueceram com isso.
Para um usurário como Paulo Guedes, o que se suprime, em favor da abstração da moeda, é a materialidade do mundo: tudo tem valor e, portanto, pode resumir-se ao valor. Se é possível comprar o prestígio dos nobres, o conhecimento dos sábios ou a força de trabalho dos peões, nada disso tem substância além dos dígitos na conta bancária. O dinheiro é divindade essencialmente prática e profana, capaz de, entre outras proezas, “fazer da desgastada viúva virgem novamente”, como escreveu Goethe, numa época em que esse feito seria extraordinário.
Se conhecemos apenas por ouvir dizer realidades com que não temos contato, o verbo pode recriar o mundo. É questão de hegemonia ou monopólio da fala: “Se alguns homens dispuserem dos meios e conhecimentos necessários, poderão convencer os demais a agir contra seus próprios interesses”, afirma Edward Bernays, o “pai das relações-públicas”. Perfumam-se flores mal cheirosas dando-lhes nomes perfumados, a ponto de os que as cheiram desconfiar de seus narizes.
E os militares nisso tudo? Descendem remotamente dos tenentes que, na República Velha, classe média indignada, promoveram uma revolução, a de 1930, que pretendia industrializar o país e modernizá-lo por via da educação, urbanização e ascensão social. Dividiram-se em grupos — comunistas, logo derrotados, protofascistas e nacionalistas; depois, legalistas e americanófilos — os radicais entre estes antecessores da linha dura dos 70-80 e ancestrais dos que atualmente se associam ao poder.
A formação básica que recebem é sectária e pobre. Ainda assim, por que chegaram lá, pilotando um caos tão evidente? Primeiro, porque uma conspiração lá os pôs. Segundo, porque o Brasil, potência regional, isolado nessa parte da América que o Norte cavalga, tem tacapes e flechas mais poderosas do que os vizinhos — embora limitadas ao alcance de 300 km — mas não compatíveis com qualquer projeto de resistência, nem haveria oportunidade para tal, infiltradas como estão elites e corporações do país, independentemente da ideologia que põem na vitrina — inclusive as militares.
Bastou, quanto a isso, a experiência do governo Geisel.
NILSON LAGE ” BLOG TIJOLAÇO” ( BRASIL)