Barroso tem um agravante. No STF, tornou-se o principal avalista da selvageria que tomou conta do país, promoveu o desmonte das instituições e levou ao poder o zoológico do bolsonarismo.
A entrevista do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), à bancada amiga da Globonews, é a versão almofadinha do simplismo fundamentalista que tomou conta do país. É o chamado terraplanismo sociológico, que abjura qualquer dado da realidade que possa comprometer suas crenças.
Que é um poser, não se discute. Ele trata a sociologia e a história com a mesma profundidade do leigo que recorre ao ritual de rodar o vinho na taça, cheirar e provar, sem ter a menor conhecimento de enologia, apenas para impressionar os vizinhos de mesa. E, convenhamos, a discussão pública atual, em alguns veículos, mais parece um convescote de firma, do que uma análise aprofundada sobre as questões nacionais.
Às vezes imagino que a incapacidade de Barroso de analisar a realidade seja fruto de uma enorme dificuldade de enxergar os pontos centrais no objeto analisado. Acontece com intelectuais vazios, que consomem livros da moda, mas são incapazes de processar seu significado.
Um caso típico, que sempre me surpreendeu, ao longo de minha longa carreira de jornalista, era a superficialidade de Fernando Henrique Cardoso, a enorme dificuldade em identificar os pontos centrais do caso analisado e de ficar fazendo firulas, encerando a bola no meio campo, sem saber o caminho do gol.
Barroso tem um agravante. No STF, tornou-se o principal avalista da selvageria que tomou conta do país, promoveu o desmonte das instituições e levou ao poder o zoológico do bolsonarismo. Então, impôs-se um desafio adicional, de permanentemente justificar o bebê de Rosemary que brotou de suas decisões e declarações. No mercado, quando se adquire um ativo podre, os mais espertos “realizam o prejuízo” – isto é, vendem com algum prejuízo para não ter prejuízo maior. Barroso, não: levará o micro preto até o fim.
Nas sucessivas palestras que faz – para um público aparentemente tão pouco exigente quanto a bancada amiga da Globonews – desenvolveu um álibi que, por falta de imaginação, é recorrente. Cita Gramsci, para explicar que, no Brasil, o velho morreu e o novo ainda não nasceu. Então há um período de escuridão antes do novo porvir, que será radioso, apud Barroso. Afinal, segundo ele, o Brasil é um país fabuloso, no qual a democracia vem se fortalecendo ano após ano, conseguiu universalizar a educação básica, tirar milhões de pessoas da linha da miséria.
E saiu-se com essa. Quando iniciou os estudos universitários, o grande desafio era combater a tortura que se praticava no país. Hoje em dia, o grande desafio é conseguir a modernização da economia e combater a corrupção, porque já conquistamos a democracia. Diz isso no momento em que o maior líder da oposição se tornou um prisioneiro político, com a ajuda inestimável do próprio Barroso.
Estão sendo desmontados todos os fatores, mencionados por Barroso, que permitiram os grandes avanços brasileiros pós-redemocratização. E Barroso não quer observar a realidade, para não se chocar com as asperezas do mundo real. Excesso de sensibilidade ou charlatanismo político? Ou um caso clássico da síndrome de Maria Antonieta?
Naquele momento, na Rocinha, na Mangueira, no Irajá, jovens estão sendo assassinados pela polícia; há um governador egresso do Judiciário, que viaja de helicóptero estimulando a polícia a atirar na cabecinha das pessoas; as milícias ampliam seu poder territorial no Rio de Janeiro; disputas de organizações criminosas provocam a morte de 55 pessoas nos presídios de Manaus; o licenciamento ambiental está sendo destruído, o fundamentalismo religioso avança em todas as áreas, a informalidade no emprego atinge 45% da força de trabalho, há o risco concreto do país ficar à mercê das organizações criminosas, ou de terraplanistas, que conseguiram emplacar o presidente da República.
Mas, para o intelectual frívolo, tudo se resolve sem precisar recorrer a nenhuma fundamentação científica. Basta citar Gramsci sem a menor preocupação em interpretá-lo à luz da realidade brasileira. Com a mesma sem-cerimônia de um terraplanista defendendo suas convicções. Ou do general Alberto Heleno recorrendo ao método científico de pesquisas mensagens de WhatsApp e vídeos do Youtube para firmar suas convicções.
O obscurantismo brasileiro é um trabalho de décadas. E uma das grandes contribuições foi a miragem desse intelectualismo de salão, superficial como as notas de uma coluna social, que gosta de se apregoar como “homem bom, que só faz o bem” e se encantou um dia com o fato de ser mais um jurista que pretender entender o país, equiparando-se a Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e San Tiago Dantas.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)