Recomendo a 4ª temporada da série “Billions”, que se desenvolve em cima das disputas de poder envolvendo grandes financistas e procuradores, especialmente, candidatos ao cargo de procurador-geral.
Peça 1 – procuradores e o jogo político dos “Billions”
Para o público brasileiro, as séries de TV fechada são o melhor caminho para entender novos aspectos da vida americana e mundial. Já houve boas séries sobre a cooperação internacional, sobre as disputas entre os grandes escritórios de advocacia novaiorquinos e sobre os novos poderes da Procuradoria Federal – e as jogadas protagonizadas por procuradores.
Recomendo a 4ª temporada da série “Billions”, que se desenvolve em cima das disputas de poder envolvendo grandes financistas e procuradores, especialmente, candidatos ao cargo de procurador-geral.
É um jogo em que as partes exploram ao máximo os interesses individuais de juízes, bilionários, políticos e as manchetes da mídia – a tradicional e a das redes sociais. Há um ex-procurador geral que tira um banco de uma investigação de lavagem de dinheiro em troca de crédito para os negócios de seu pai. Outro que faz uma barganha com um juiz para conseguir autorização para grampear o adversário. Os bilionários entram no jogo com seu poder de influência sobre os políticos e sobre outros bilionários que podem influenciar outros políticos.
Cria-se um enorme jogo de xadrez no qual as armas dos diversos procuradores consistem em se valer dos poderes de tirar ou incluir suspeitos em inquéritos, ameaçar com prisões preventivas com estardalhaço ou arquivar as denúncias, e disputar os grandes inquéritos, que podem render dividendos – para procuradores e juízes – na escalada profissional.
O título “Billions” é apropriado para revelar a dimensão do jogo. Todos os movimentos se dão em torno de interesses pessoais dos envolvidos. E os interesses se movem na casa dos bilhões.
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Aliás, os recentes entreveros entre o Procurador Geral da Suiça Michael Lauber e o principal responsável pelas investigações da Lava jato, Stefan Lenz, comprovam a disseminação do padrão “Billions”. Lenz saiu do MP levando consigo vários colegas. E montou um escritório de advocacia visando vender seus serviços e sua fama de implacável – e obviamente sua rede de relacionamentos com os MPs implacáveis de vários países – a clientes acusados de corrupção.
O site tem uma página deblaterando contra a corrupção; e outra oferecendo seus serviços aos acusados de corrupção.
Peça 2 – as disputas pela PGR e a lista tríplice
Há dois grupos em disputa pela sucessão de Raquel Dodge na Procuradoria Geral da República: a Lava Jato, tendo Sérgio Moro como padrinho, e a própria Raquel.
A indicação do PGR passa por três julgadores: a corporação, que vota na tal Lista Tríplice, selecionando três procuradores para indicação pelo Presidente da República; o próprio presidente, a quem cabe a indicação; e o Senado, a quem cabe a aprovação do nome escolhido.
Para passar pelo filtro da Lista Tríplice, o candidato deve se apresentar à categoria defendendo suas prerrogativas corporativas: condições financeiras, de trabalho e independência funcional, da qual o exemplo mais simbólico foi o poder assumido pela Lava Jato.
Quanto mais bem-sucedido for junto à corporação, mais mal-sucedido será perante o Presidente da República e o Senado. Ou seja, há um conflito insanável entre as duas primeiras etapas.
Peça 3 – o presidente e a Lista Tríplice
O Presidente não é obrigado a se sujeitar à Lista Tríplice. Mas, fugindo dela, haverá um desgaste político inevitável. A menos que… A menos que reconduza Raquel Dodge ao cargo.
Raquel deu a senha, ao não entrar na disputa da Lista Tríplice.
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Hoje, a reportagem de Gustavo Uribe e Reynaldo Turolla Jr na Folha – “Por recondução Dodge é apresentada a Bolsonaro como alternativa previsível” – é precisa ao mostrar os movimentos de assessores jurídicos de Bolsonaro para convencê-lo a manter Raquel no cargo. O argumento principal é de que Raquel é “previsível”, conta com apoio no Supremo Tribunal Federal e no Congresso contra os esbirros da Lava Jato.
De fato, em sua gestão houve notável redução nos abusos da Lava Jato. Não apenas isso. Em toda sua gestão, a única atitude propositiva de Raquel foi contra a própria Lava Jato, ao entrar com uma ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade) contra a tentativa de criar uma fundação para administrar R$ 2,5 bilhões que a Lava Jato receberia pelos serviços prestados, na ação que surrupiou US$ 3 bilhões da Petrobras, em um conluio que envolveu procuradores do próprio Departamento de Justiça e grandes escritórios de advocacia.
Mesmo seus aliados consideraram desproporcional sua atitude contra os “tigrinhos” da Lava Janot (uma paródia dos “tigrões”, como eram chamados os barras pesadas da repressão), quando uma conversa poderia tê-los demovidos da iniciativa – tão despropositada era a proposta da fundação.
Peça 4 – Raquel x Sérgio Moro
Entra-se, então, em um jogo interessantíssimo, em termos de análise de probabilidade, embora vergonhoso em termos de cidadania: a disputa Sérgio Moro/Lava Jato versus Raquel Dodge pela atenção de Bolsonaro.
Ou seja, o mais suspeito presidente da história sendo afagado por representantes das duas corporações que mais poderes ganharam com o combate à corrupção.
Nem se imagine Moro como um defensor da ética e da moralidade contra as manobras políticas de Raquel. Afinal, ele teve participação ativa na eleição de Bolsonaro e foi premiado com o cargo de Ministro da Justiça.
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Ambos têm como trunfo maior as investigações sobre Flávio Bolsonaro e sobre o próprio Jair. A Polícia Federal concluiu o inquérito sobre o caso Flávio e o remeteu à PGR. Mas a titularidade da denúncia é do MPF. E quem comanda a PF é Sérgio Moro, que tem como trunfo maior a parceria com a Globo.
Peça 5 – o país de Macunaíma
Todos os estereótipos de “Billions” tem sua contraparte brasileira. O bilionário André Esteves, que saiu ileso da Lava Jato (e aí, Dallagnol?), o procurador geral Rodrigo Janot, Dallagnol. O único personagem não caracterizado em “Billions”, pela incapacidade do roteirista de aproximar a ficção da realidade brasileira, é Jair Bolsonaro.
Têm-se, então, essa situação esdrúxula que marca o apogeu da politização e da desmoralização da Justiça: as duas instituições que conseguiram notável poder político tendo como bandeira o combate à corrupção, disputando diretamente a atenção de Jair Bolsonaro, tendo como contraproposta a capacidade de blindá-lo, ele, um presidente da República suspeito de ligações estreitas com as milícias e os porões.
Quando alertávamos, lá atrás, para os perigos da parceria mídia-Lava Jato, para a cegueira de não se perceber o monstro que estava sendo parido, para a lógica de que todo poder absoluto tende à corrupção, era sobre isso que nos referíamos.
E ainda tem a isca da indicação para o Supremo, que Raquel ambicionava desde Michel Temer.
Mas, como declarou o Ministro Luís Roberto Barroso, o país entrou definitivamente na era Iluminista. E quem sou para desmentir um Ministro que fala tão bonito.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)