Enfim, antes que a “verdade” fosse destruída pelas “verdades” dos fake news , o país já estava exposto ao imediatismo, ao pensamento primário, a ponto da “racionalidade” do mercado apostar em um completo imbecil para dar ao Brasil o destino manifesto.
Foi excepcional a entrevista do ex-presidente José Sarney a Ana Dubeux e Denise Rothenburg, do Correio Brasiliense. Sarney é um dos melhores analistas dos ventos políticos, não apenas o dia-a-dia da política, mas das modificações trazidas pelas transformações sociais e tecnológicas.
Sarney tem uma capacidade de análise que, por exemplo, falta a Fernando Henrique Cardoso. Em cada tema, sabe identificar o ponto central e ter a explicação lógica para encaixá-lo no cenário mais amplo. É até curioso esse paradoxo, do político tido como paradigma do coronel político formular a análise mais sofisticada, enquanto o “Príncipe”, representante da inteligência paulistana não consegue sair dos bordões midiáticos, nesse jogo de “in” e “out” que caracteriza a pauperização do debate político. Falar em combater a pobreza é “in”. Combater a pobreza é “out”.
Em 2009 tive uma conversa com Sarney, na qual analisou com maestria a perda de influência do político para as organizações que surgiam da sociedade e da mídia para as novas formas de comunicação. Em plena pré-campanha eleitoral de 2010, cantou o fim do PSDB, por usar como única arma o discurso do ódio. O fenômeno das redes sociais ainda não se alastrara, não havia Lava Jato nem a epidemia dos fake news, presentes na nova análise de Sarney.
Na entrevista ao Correio Braziliense, Sarney coloca no centro da crise o desmanche institucional dos três poderes e a ascensão deletéria do 4º poder, o Ministério Público, e da pós-verdade, os fake news das redes sociais, que acabaram com a “verdade”.
Não aprofunda o que seria esse conceito, a “verdade” antes dos fake news. E reside nesse conceito, da transformação de dogmas em “verdades”, da incapacidade de se ter uma visão sistêmica dos problemas nacionais, a raiz dos problemas brasileiros, a enorme dificuldade de renovar conceitos, de sofisticar análises, de interpretar a realidade.
A discussão pública brasileira jamais conseguiu ir além do bordão, do alvo único. Governar é abrir estradas; ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil; se um ajuste fiscal rigoroso derruba a economia, um mais rigoroso ainda trará o desenvolvimento.
As análises dos “especialistas” sempre se moldaram aos interesses imediatos dos patrocinadores, pautando todas as discussões no período. E, como sempre havia uma intenção política por trás do debate público, amoldava-se a realidade e as teorias aos interesses dos patrocinadores.
Falácia da composição
Em seu livro sobre a riqueza no mundo, Thomas PIketti identificou como maior fator de acumulação financeira, e de desigualdade, na taxa de juros dos investimentos, superior aos índices de crescimento do PIB.
Há décadas, a discussão econômica fixou-se na pauta única do ajuste fiscal, na intocabilidade das políticas monetária e fiscal, na minimização dos temas prioritários, como educação, inclusão social, na demonização de qualquer direito social e trabalhista. E no primado da taxa de juros de equilíbrio, sempre superior aos índices de desempenho da economia.
E transformaram em ciência o chamado sofisma da composição: se reduzo os encargos trabalhistas, as empresas ficam mais produtivas; se as empresas ficam mais produtivas, logo a economia ficará mais produtiva.
É a imbecilidade crônica do chamado sofisma da composição, de intelectuais de baixíssimo nível pretendendo criticar o baixíssimo nível das redes sociais.
Se desmonta o mercado de trabalho, reduz a formalidade;
A informalidade reduz a capacidade de tomada de crédito pelo consumidor, seja pela ausência de carteira de trabalho, seja ela imprevisibilidade dos rendimentos.
Com a redução do trabalho formal, haverá menos arrecadação fiscal e previdenciária (INSS e Imposto de Renda) e menos recursos para investimento (FGTS).
Com menos FGTS, haverá aumento no custo médio do financiamento, encarecendo os investimentos futuros.
Outro exemplo da falácia da composição foi o Minha Casa Minha Vida. Em 2007 havia um déficit de 7 milhões de moradias. O MCMV entregou 4 milhões. E o déficit aumentou.
Pensou-se no programa exclusivamente do ponto de vista de mecanismos de financiamento. A explosão do programa provocou especulação urbana e, com ele, a explosão dos aluguéis. Para milhões de pessoas, o aluguel, que não era peso excessivo, passou a ser. E elas foram expulsas para a periferia mais distante, para a submoradia ou para favelas.
Toda tentativa de se criar fóruns de discussão, que permitissem diagnósticos mais abrangentes de problemas, foi demonizada pela mídia, como sendo bolivarianas ou o raios que os parta!. Conferências de saúde, de educação, de ciência e tecnologia, não era aceito nada que sofisticasse as discussões, um argumento a mais que colocasse em curto circuito o pensamento monofásico presente nas discussões públicas.
O PDP (Programa de Desenvolvimento Produtivo), o melhor programa industrial jamais elaborado no país, contribuição da Fiocruz, e que poderia ser matriz de uma revolução no planejamento brasileiro, foi sacrificado pela mídia por razões políticas.
Ele invertia a lógica meramente financeira dos demais programas. Definia um objetivo claro: a melhoria no atendimento da saúde. A partir daí juntava todas as peças, a produção de medicamentos, o estímulo aos serviços, as novas práticas terapêuticas, cada qual tendo um desdobramento econômico. Foi sacrificado porque um doleiro tinha recursos aplicados em um laboratório, que dificilmente teria passado pelos filtros criados pelo programa.
Por aqui, jogam-se fora as ideias, os conceitos, como se fosse matéria prima abundante. E tudo isso para ter o conforto do sapo em caldeirão de água fervendo. Cria-se a “verdade”, de que bastará a reforma da Previdência para todos os problemas serem resolvidos. A cada dia que passa, a temperatura da água aumenta um grau. E só quando houver a fervura final aparecerá o estadista único, o Sr. Crise, trazendo alguma saída para uma economia em cacos.
O mito do CEO genérico
Nem o fato da inclusão social ter criado um mercado interno poderoso foi suficiente para que se aceitasse a mudança de padrão de análise.
Na Fazenda – e nas empresas -, criou-se o mito do CEO genérico, o sujeito que trata todos os problemas pela ótica estritamente financeira e dos resultados de curto prazo, de olho nos bônus de desempenho. Esses gênios quebraram empresas como a Sadia, comprometeram o futuro da Vale, da BRF, inviabilizaram o Unibanco pela desconsideração absoluta sobre as características específicas de cada setor. Luiz Furlan, da Sadia, encantava-se com a economia trazida para a empresa na lavagem de uniformes, enquanto seu financeiro montava, madeira a madeira, o caixão para o enterro da companhia.
Principalmente, esse padrão linear de dar sobrevida a dogmas manteve a economia brasileira em crescimento pífio desde o Plano Real. O único momento de crescimento mais vigoroso foi justamente durante a crise de 2008, inspirado pelo Senhor Crise, único personagem político a tirar a política econômica da inércia. E, depois do sucesso inicial, cria-se uma nova verdade, dos subsídios incontroláveis, que é repetida a exaustão, até a crise se impor novamente. E, vindo a crise, radicaliza-se ainda mais o receituário anterior.
Não há o menor compromisso da política econômica com a realidade e com o longo prazo.
Quando o receituário de Joaquim Levy fracassou, uma loucura de impor choques tarifários, cambial, fiscal, trancamento de crédito e explosão de juros simultaneamente, a alegação dos economistas é que não havia radicalizado o suficiente. E essa “verdade” era aceita pelo sistema, sem nenhuma necessidade de impulsionamento pelas redes sociais.
Derruba-se Dilma, porque bastaria sua queda para tudo ser resolvido, e impõe-se a loucura draconiana da Lei do Teto, do desmanche da legislação trabalhista, sempre com a promessa futura de entregar o crescimento.
De lá para cá, aplicou-se a fórmula mágica do ajuste fiscal pró-cíclico. A economia atravessa o mais prolongado processo de recuperação da história e insiste-se na mesma fórmula mágica.
Enfim, antes que a “verdade” fosse destruída pelas “verdades” dos fake news , o país já estava exposto ao imediatismo, ao pensamento primário, a ponto da “racionalidade” do mercado apostar em um completo imbecil para dar ao Brasil o destino manifesto.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)