Em seminário do CEBRAP, cientistas políticos Fernando Limongi, Argelina Figueiredo e Maria Hermínia Tavares de Almeida debatem crise institucional brasileira e falta de articulação do atual governo
Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República há apenas cinco meses e meio, mas já se encontra em apuros no Congresso Nacional e nas ruas. Enquanto milhares de pessoas ocupavam na quarta-feira as ruas de capitais e cidades médias, em 26 estados e no DF, o ministro da Educação era obrigado pelos deputados a comparecer na Câmara e enfrentar duros questionamentos, inclusive de parlamentares do Centrão, sobre o bloqueio de verbas em universidades e escolas. Mesmo precisando aprovar uma complicada reforma da Previdência e um pacote anticrime, o ultraconservador vem se apoiando na ala mais radical e ideológica de seu Governo ao mesmo tempo em que confronta o Legislativo, o Judiciário e até os militares que formam parte da gestão federal. “O Brasil pediu uma nova forma de se relacionar com os poderes da República, e assim seguirei, em respeito máximo à população”, tuitou nesta quinta-feira o presidente sobre possíveis acordos e alianças com os partidos no Congresso, ecoando a ala anti-establishment do bolsonarismo.
Quando as ruas e o Congresso mandavam um recado para Bolsonaro, uma questão rondava o seminário dos 50 anos do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), em São Paulo. “O Governo não tem inteligência política, ou vê alguma lógica no confronto com as instituições?”. A pergunta foi feita cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida diante da constatação de seu colega, Fernando Limongi, de que os obstáculos não são colocados pelos parlamentares ou pela oposição, mas sim pelo próprio presidente. “O Centrão está louco para dar maioria para o Governo, mas o Governo não quer, porque não sabe como lidar como a maioria. Porque não sabe dividir qualquer benefício que as políticas aprovadas pelo Congresso pode trazer. E tudo o que o Governo faz é atacar os parlamentares, que continuam mandando sinais de que querem participar do Governo”, afirmou ele durante um debate, que também reunia a cientista política Argelina Figueiredo, sobre o atual quadro de desgaste institucional vivido no país nos últimos anos e suas origens.
A questão chega num momento em que o Executivo, na visão de seus críticos, dá guinadas institucionais que equivalem a verdadeiros desmontes de ministérios —sobretudo Educação e Meio Ambiente— e de políticas públicas. Tampouco há canais entre Governo e sociedade civil. A restrição orçamentária do Estado é uma realidade, mas Bolsonaro e seus filhos vem mantendo acesa uma cruzada moral contra a esquerda para justificar cortes e mobilizar seguidores. Uma estratégia parece ecoar um dos discursos feito pelo presidente neste ano, ao lado do autoproclamado filósofo de extrema direita Olavo de Carvalho, nos Estados Unidos: é preciso “desconstruir muita coisa no Brasil” antes de construir.
Bolsonaro se elegeu prometendo acabar com o “toma lá, dá cá”, isto é, os sempre necessários acordos de governabilidade com partidos no Legislativo para viabilizar o chamado presidencialismo de coalizão que envolve troca de cargos para fins de representatividade e influência na política pública, mas não só: os diversos casos revelados mostram como acesso aos cargos, na verdade, era um atalho para fontes de financiamento por meios lícitos (garantir emendas) ou ilícitos (cobrar por contratos). “A opinião predominante é de que a crise é institucional, com foco no presidencialismo de coalizão, que seria fonte da corrupção no Brasil revelada pela Lava Jato”, contextualizava nessa quarta Figueiredo. Porém, ela rejeita essa relação automática que se estabeleceu entre o sistema político brasileiro e a corrupção descoberta: “Não existe relação lógica entre corrupção e o presidencialismo de coalizão. A corrupção varia entre países tanto no interior do parlamentarismo como no interior do presidencialismo”.
Foi precisamente esse entendimento de que o presidencialismo de coalizão é necessariamente corrupto que abriu caminho para o populismo ultradireitista de Bolsonaro, que surfou no discurso da antipolítica ao qual, agora, se vê atado. Aqui e ali não param de surgir comparações entre o ultradireitista e Dilma Rousseff (PT), Fernando Collor e até Jânio Quadros, três presidentes que governaram de costas para o Congresso e acabaram caindo por não dominarem a articulação política. Os mais pessimistas preveem uma escalada autoritária, a partir da utilização de meios legais e institucionais, com o objetivo de minar a própria democracia e as instituições por dentro. Um processo visto em países como Turquia, Venezuela, Polônia e Hungria —este último país é tido como modelo para os bolsonaristas radicais. Nesta avaliação, o decreto de posse de armas que ampliou drasticamente o número de pessoas autorizadas não é apenas uma tentativa de cumprir uma bandeira de campanha: é em si mesmo um teste para as instituições. Câmara e o próprio STF questionaram a medida e a queda de braço está instalada: o que vai prevalecer? O mesmo raciocínio vale para os cortes em Educação e a perseguição a disciplinas como Sociologia e Filosofia que representariam, principalmente, uma caçada ao pensamento crítico em escolas e universidades assim como a tentativa de enfraquecer a UNE (União Nacional dos Estudantes). Outra faceta na mesma linha seria o constante flerte dos bolsonaristas e do próprio clã Bolsonaro com o questionamento dos outros Poderes, como o Congresso e o próprio Supremo Tribunal Federal. Faria parte também desta investida o apoio tácito ou explícito a campanhas pelo impeachment de ministros do STF —aliados do bolsonarismo convocaram para o dia 26 de maio outra manifestação para pressionar a corte. A questão persiste: falta inteligência política ou o confronto é projeto?
Origens da crise institucional
Os três pesquisadores do CEBRAP destacaram alguns dados e fatos que alimentaram o que consideram ser uma crise institucional no Brasil. Figueiredo enxerga algumas ações políticas que, desde 2014, estão minando as instituições políticas por dentro. “A contestação do resultado eleitoral pela oposição foi um fato inédito que demonstrou desconfiança no processo eleitoral”, apontou a cientista política. Ela também recordou a atuação do então presidente da Câmara Eduardo Cunha, que utilizou “suas prerrogativas institucionais para comandar a resistência a qualquer tentativa de mudanças e medidas que pudessem melhorar a situação econômica no segundo mandato de Dilma Rousseff”. Por fim, ela acredita que “o presidente república renunciou a seu papel institucional e passou a criar pontes para o futuro dele”.
Por sua vez, Limongi voltou suas atenções para decisões do Supremo Tribunal Federal que, para ele, “desestabilizaram o sistema político” ao longo do tempo. Uma espécie de ativismo judicial que tem origem na desconfiança com o legislador que, segundo diz, a própria Constituição de 1988 inspira. O pesquisador cita três decisões do STF que fazem parte de sua pesquisa, ainda não concluída. A primeira, de 2005, ordenou a abertura da CPI dos Bingos e confrontou a decisão da maioria dos parlamentares em não abri-la. A segunda, de 2006, foi a que derrubou a cláusula de barreira que havia sido implementada pelo Congresso, interrompendo a evolução do sistema político da Nova República e gerando fragmentação no Legislativo e garantido recursos e a sobrevivência de partidos sem representação. A terceira, de 2007, determinou a fidelidade partidária no momento em que um político decide trocar de legenda. Para o cientista político, essas mudanças significaram uma quebra na jurisprudência adotada pela própria Corte, que até então se negava a interferir no andamento do jogo político. E, longe de representarem a defesa de minorias, atenderam o desejo de grupos políticos minoritários. “O Supremo passa a achar que pode reformar o sistema político brasileiro e age de maneira desordenada. Deixou de ser um árbitro para se inserir no jogo”, argumentou. De acordo com essa leitura, a Corte teria pavimentado o caminho para futuras interferências de juízes e procuradores no jogo político.
Já Tavares de Almeida apresentou dados do Latinobarómetro que indicam uma baixa confiança da sociedade brasileira na democracia, colocando-a ao lado de países como El Salvador e Nicarágua. “Estamos diante de democratas insatisfeitos ou cidadãos insatisfeitos?”, questiona cientista política, para quem cidadãos desconfiados podem ser “mobilizados positivamente para manter os controles sobre seus representantes, ou negativamente para minar as instituições democráticas”, que por sua vez devem assegurar a competição política e o acesso de forças que expressem descontentamento. “Onde nós estamos, não tenho certeza. Temos claramente um governante que pertence a um grupo que não tem compromisso com o sistema democrático e que pode fazer muita coisa para destruí-lo”, argumenta. “Por outro lado, o Brasil tem instituições mais fortes e testadas que em lugares como El Salvador. Temos uma tradição de resolução de problemas pela via eleitoral desde o império e que se só foi completamente interrompido no Estado Novo”, acrescenta.
Democracia em risco? Uma outra visão
O EL PAÍS também conversou por telefone Carlos Pereira, cientista político da Fundação Getúlio Vargas que possui uma outra leitura do atual cenário. Para ele, as instituições brasileiras seguem sólidas e funcionando perfeitamente, com Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal e meios de comunicação atuando de forma independente. A Operação Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff, os processos judiciais enfrentados pelo ex-presidente Michel Temer e as manifestações de quarta-feira são provas desse funcionamento pleno da democracia.
Dessa forma, ele não acredita que Bolsonaro represente uma ameaça às instituições, que devem levantar barreiras de contenção para seus projetos mais autoritários. Em última instância, podem inclusive expulsá-lo, como fez com Dilma Rousseff e Fernando Collor, incapazes de governar com o Congresso. Assim, ele acredita que o Governo Bolsonaro “tem um dilema que não é de fácil resolução”, já que ele “se caracteriza por ser um populista que busca manter relações diretas com a sociedade”. Ao mesmo tempo, começa a perceber que “sem os líderes partidários, o governo não governa”. “A articulação fere de morte a própria essência do governo. Ao deixar de articular, ele fica paralisado e cada vez mais refém dos atores políticos”, avalia.
Pereira também acredita que, até o momento, a agenda ultraconservadora de Bolsonaro vem sendo tocada dentro do jogo político tradicional. Elas por si só não podem acabar minando a democracia por dentro? “Democracia tem a ver com alocação de poder. Democracia é a escolha de governantes de forma livres, competitiva e incerta (…). E nós temos isso. Não podemos colocar penduricalhos em seu conceito, sob o risco de esvaziá-lo”.
FELIPE BETIM ” EL PAÍS” ( ESPANHA / BRASIL)