O SORRISO LUMINOSO DE DORIS DAY NOS ABANDONOU

Cantora de uma das versões mais doces de Whatever will be, will we (Que sera, sera), tinha 97 anos e foi uma das grandes actrizes de meados do século XX.



Doris Day, rosto e voz da era clássica de Hollywood que gostava de finais felizes, morreu esta segunda-feira, aos 97 anos. A notícia foi avançada pela fundação com o seu nome dedicada ao bem-estar animal, a causa a que consagrou a sua vida após o estrelato. Calamity Jane (1953), o filme que preferia em toda a sua carreira, ou O Homem que Sabia Demais (1956), de Alfred Hitchcock, onde interpretava o tema Whatever will be, will be (Que sera, sera), são alguns dos títulos pelos quais será lembrada.

“Day gozava de excelente saúde física para a sua idade até ter contraído uma grave pneumonia recentemente, que resultou na sua morte”, informou a Doris Day Animal Foundation, fundada em 1978. A actriz, cantora e activista morreu rodeada por “alguns amigos próximos” na sua casa no Vale de Carmel, na Califórnia​, informou ainda a instituição.





A sua voz, que ficará para sempre associada a uma das versões mais doces de Whatever will be, will be (Que sera, sera), era tão conhecida pela América quanto o seu sorriso luminoso – a carreira da actriz, especialmente nas décadas de 1950 e 60 em que se destacou, foi em parte a de uma loira ingénua e virginal. A sua expressão solar fez dela uma “girl next door”, uma mulher americana idealizada mas acessível, com o extra de ter dotes de cantora. Destacou-se nos musicais e nas comédias familiares mas depois enveredaria por papéis dramáticos como o da cantora Ruth Etting em Ama-me ou Esquece-me (1955), de Charles Vidor.

Doris Mary Ann Kappelhoff nasceu em 1922 no estado de Ohio e começou a cantar depois de um acidente de carro que a feriu numa perna e cerceou a sua carreira de sonho – a de bailarina. A rádio e Ella Fitzgerald acompanharam a sua convalescença e aos 12 anos começou a cantar em público. Aos 15 anos tornava-se profissional, tendo no tema Sentimental journey, interpretado pela banda Les Brown & His Orchestra, o seu primeiro êxito comercial. Fez carreira nas big bands dos anos 1930 e, apesar de ter ficado sobretudo conhecida como actriz, após ser descoberta numa festa em Hollywood em 1947, foi uma das mais profícuas cantoras da sua era e do século passado. “Como cantora, Doris está no mesmo nível que Bing Crosby e Frank Sinatra”, disse em tempos Les Brown, citado pelo New York Times.

Se os anos 1950 foram de intensa actividade discográfica, de resto com grande popularidade, a década seguinte seria a da sua ascensão como actriz em Hollywood. Filmou com Hitchcock ou Michael Curtiz, que lhe deu o primeiro papel em Romance no Alto Mar (1948), e contracenou com James Stewart, Cary Grant, James Cagney, Lauren Bacall, Ginger Rogers ou Rock Hudson – com o qual firmou uma amizade. “Divertia-me tanto a filmar com o meu amigo Rock. Rimo-nos sempre a fazer os três filmes que fizemos juntos”, disse em Março à revista Hollywood Reporter. “Ela era tão certinha, com dentes perfeitos, sardas e nariz arrebitado, que as pessoas simplesmente pensavam que ela encaixava no conceito da virgem”, comentava Rock Hudson sobre a imagem de Doris Day, nome quase sinónimo de entretenimento salutar no pós-guerra.

A avaliação da carga sexual que tinha ou não tinha foi uma constante na sua carreira também na música – é “a cantora mais cool e sexy de baladas lentas da história do cinema” para o crítico Gary Giddins na Associated Press, por exemplo, mas o crítico Dwight Macdonald, citado pelo New York Times, descreve-a “saudável como uma taça de cornflakes e ainda menos sexy do que isso”. Um dos filmes que fez, a comédia romântica Conversa de Travesseiro (1959), foi tido como avançado para a época no tocante à sexualidade. O New York Times conta que, ainda assim, Doris Day recusou o papel que tornaria Anne Bancroft num símbolo – o de Mrs. Robinson em A Primeira Noite (1967), com Dustin Hoffman – porque “ofendia” os seus valores pessoais.

Quase uma década mais tarde, diria, no seu livro de memórias, Doris Day: Her Own Story​ (1976) : “Tenho a triste reputação de ser uma Menina Boazinha [‘Miss Goody Two-Shoes’, no inglês original], a Virgem da América e tudo isso, por isso temo que possa chocar algumas pessoas ao dizer que acredito que duas pessoas só devem casar-se depois de terem vivido juntas.” Nessa altura, a sua estrela já não brilhava com o mesmo fulgor numa Hollywood tomada pelos “Movie Brats” que assinavam O Padrinho ou Mean Streets e em que filmes como Bonnie e Clyde (1967) já tinham deixado para trás a sua maria-rapaz de Calamity Jane.

No total, fez 39 filmes. Concentrou a sua carreira como actriz em três décadas (o último filme que fez data de 1968), tendo enveredado a contragosto pela televisão no final dos anos 1960 depois de um contrato contraído em seu nome pelo terceiro marido, que além disso a deixou endividada. A sua imagem continuou a moldar-se nas décadas seguintes, revalorizada pelos pares e pelos críticos, que acabariam por destacar a importância que teve ao interpretar mulheres de carreira e diversificar o seu campo de acção.


A grande Doris Day
Casou-se quatro vezes, foi vítima de violência doméstica no primeiro matrimónio e burlada no terceiro; teve um filho, o produtor musical Terry Melcher, importante nome da música californiana da década de 1960 que trabalhou com os Byrds e os Beach Boys, que se cruzou com a Família Manson do homicida Charles Manson e que morreu em 2004.

Day continuava a receber sinais de admiração dos seus fãs, entre os quais muitas crianças, como aconteceu em Março, quando cumpriu 97 anos e falou com a Hollywood Reporter. “Os [meus] diferentes filmes são bem recebidos pelos espectadores por razões diferentes, mas o que há em comum parece ser o facto de serem alegres.” Nessa entrevista, resumiu o que considerava ser o seu legado para a indústria do cinema: “Gostava de trabalhar e tentava sempre fazer o meu melhor em cada papel. Fico entusiasmada por saber que as pessoas ainda vêem os meus filmes e que eles as animam.”

JOANA AMARAL CARDOSO ” ” PÚBLICO” ( PORTUGAL)

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