O ADEUS DE ENNIO MORRICONE

Italiano faz sua última turnê pelo mundo

Tem história marcada pela diversidade

Impõe a sua personalidade nos acordes

Nunca imaginei que fosse chorar num espetáculo de música. Não costumo ser dado a estas dramaticidades, confesso que sinto certo constrangimento. Mas me deu um enorme conforto quando olhei em volta e vi que os outros também choravam numa emoção coletiva. Aquele homem todo de preto, do alto do seu 1 metro e 65, regia como entusiasmo e vigor de menino aos 90 anos, a última temporada da sua vida. Veio se despedir. Anda pela a Europa numa longa viagem iniciada em 2017 e prevista para terminar em Lucca, Itália, no dia 29 de junho. Mas Ennio Morricone gosta de surpreender e sempre pode querer dar uma esticadinha.

Elegante, traje negro, amante do vinho, do azeite e sem a menor paciência para jornalistas e tietagens, seduziu uma plateia de mais de 10 mil pessoas que dia 8 de maio lotou o Palácio de Esportes de Madri para ver “The final concerts world tour”. Primeiro vieram os do coral Tália com seus longos e black tie, seguidos pela orquestra Roma Sinfonietta toda de negro, num contraste de fazer brilhar ainda mais os metais e as madeiras dos instrumentos. Nada menos que 200 pessoas e as duas vozes de Susanna Rigacci e Dulce Pontes, regidas por Morricone de uma cadeira ou melhor: um trono de onde reinou por 2h30.

Morricone tem a marca da diversidade. Consegue ser diferente em cada composição sem perder o vigor, a sofisticação e a delicadeza. Não se repete e impõe sua personalidade nos acordes, arranjos e mínimos detalhes. Regeu sua orquestra daquela cadeira/trono diante do seu caderno espiral de capa verde, repleto de anotações e trechos marcados de amarelo. Um caderno já gasto por horas e horas de ensaios e espetáculos. Uma joia.

O filósofo americano Hubert Dreyfus (1929-2017), discípulo de Martin Heidegger, mostrou no documentário “Being in the world” que há algo do qual somente os seres humanos são capazes: a simplicidade e a espontaneidade para exercer talentos e virtudes. Morricone com seu caderno, sua arte e sua cadeira/trono, rege 200 pessoas e duas virtuoses como se estivesse na sala de visitas da sua casa, num papo entre amigos regado a vinho e azeite.

Este talvez tenha sido o gatilho das emoções neste espetáculo. O tempo para um homem de 90 anos é diferente do seu e do meu. Não se mede por relógio, é outra dimensão, uma percepção distinta. Plenamente consciente do ciclo da vida, Morricone decidiu que antes deixar nosso planeta oferecerá pessoalmente seu melhor aos que ficam. E o faz com uma incrível generosidade dizendo: estou dando a cada um vocês um pedacinho do meu som.

Voltou ao palco três vezes. Na segunda, acompanhado de Dulce Pontes, estava tão emocionado a ponto de esquecer a batuta na coxia. Mas não passou recibo: regeu de mão vazia como tamanha naturalidade que poucos se deram conta de que o mago das trilhas estava sem sua varinha mágica.

Susanna Rigacci finalizou o terceiro bis com Ecstasy Gold (do filme “O Bom, o Feio e o Mal”) e um mar de aplausos inundou o Palácio dos Esportes. Enquanto o maestro e a soprano agradeciam ao publicou, um dos encarregados da produção se apressava em sinalizar para os músicos e coral que o espetáculo tinha acabado mesmo. Fininto.

Uma pessoa de 90 anos não tem planos para o futuro; os tem para o dia, para as próximas horas. Assim, um dia de cada vez, Morricone foi esticando sua despedida. Começou em 2017, quando completou 89 anos. Continuou por 2018 e resolveu esticar 2019. Que seu adeus seja longo.

MARCELO TOGNOZZI ” BLOG PODER 360″ ( BRASIL)

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *