Em breve, Witzel poderá ser denunciado criminalmente ou por apologia ao crime, ou, mais grave, por ordens que resultaram na morte de pessoas.
A atitude do governador Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, de anunciar um voo de helicóptero, com policiais armados de metralhadoras e sua ordem de “acabar com a bandidagem” em Angra dos Reis seria motivo para uma prisão em flagrante em qualquer país democrático.
Mesmo assim, as instituições não estão inertes.
Depois do post “Witzel precisa ser detido” recebi um conjunto de informações que mostram que as instituições não estão inertes.
Em breve, Witzel poderá ser denunciado criminalmente ou por apologia ao crime, ou, mais grave, por ordens que resultaram na morte de pessoas.
Há duas iniciativas em andamento.
No âmbito da Procuradoria Geral da República foi montado um Grupo de Trabalho Interinstitucional de Defesa da Cidadania, incumbido de analisar as declarações do governador. O GT é composto pelo Ministério Público Federal, Ministério Público do Rio de Janeiro, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Rio de Janeiro, e mais seis entidades da sociedade civil.
Há um mês, a 7ª Câmara Criminal do MPF esteve na Favela da Maré levantando dados com a população. Foram tiradas três Notas Técnicas, uma delas analisando o caráter inconstitucional, anticonvencional e criminoso das declarações do governador. Foi encaminhada à Procuradora Geral da República uma representação criminal contra Witzel.
Diz a Nota Técnica:
Em 30/10/2018, em entrevista no programa “Estúdio i”, no canal de televisão GloboNews, o Governador afirmou que a decisão do tiro não será individual do policial, explicitando que: “a ordem para efetuar o disparo não é do atirador, é do comando, e o comando vai estar vendo o alvo a ser disparado.” [disponível em https://globoplay.globo.com/v/7130612/].
Nesse programa televisivo, [disponível em https://globoplay.globo.com/v/7127025/], o governador – referindo-se à operação ocorrida naquele dia na Cidade de Deus –, e lamentando ainda a não aplicação da “lei do abate”, novamente apontou seu entendimento sobre a execução de pessoas portando armas de uso restrito: “hoje mesmo… ‘tava’ um helicóptero de filmagem… tinham cinco elementos de fuzil. Ali se você tem uma operação em que os nossos militares estão autorizados a realizar o abate, todos eles seriam eliminados.” Quando indagado se o policial deveria ter receio de responder a um processo criminal, o governador complementa “eu não estou dizendo que ninguém vai deixar de ser processado. Ninguém está sendo enganado aqui.”.
Depois do então Ministro da Justiça Raul Jungman afirmar que a proposta deveria passar “pelo crivo das leis e da justiça”, Witzel insistiu:
“A minha visão sobre o que é legítima defesa ela está na mesma sintonia com milhares de outros juristas; dezenas de juristas, milhares de juristas, cada um tem uma interpretação. Quem não pode ter hermenêutica na cabeça é o soldado, que olhando alguém de fuzil vai atirar e vai abater.” [disponível em https://globoplay.globo.com/v/7130612/].
Datado de 24 de abril de 2019, as conclusões do GT são taxativas em relação às declarações de Witzel:
contrárias ao marco legal, à luz dos requisitos caracterizadores das excludentes de ilicitude previstas no Código Penal; (ii) contrárias aos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário (PIDCP e CADH) no concernente aos parâmetros do uso da força e do emprego de arma de fogo por agentes estatais e da proteção do direito à vida; (iii) inconstitucionais, à luz da proteção aos direitos à vida e ao devido processo legal; (iv) discurso não amparado pela liberdade de expressão à luz dos deveres de altas autoridades para com o respeito aos direitos humanos e capaz de ensejar a responsabilização internacional do país, na medida em que podem ser entendidas como estímulo a violência ilegítima contra grupos socialmente vulneráveis, considerando, ademais, o histórico de violência policial crônica no Rio de Janeiro, vide a condenação internacional no caso Favela Nova Brasília v. Brasil na Corte IDH.
O próximo passo, agora, será da PGR.
A denúncia criminal da OAB-RJ
Parecer solicitado pela Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito da Ordem dos Advogados do Brasil do Estado do Rio de Janeiro avança nas acusações contra Witzel e conclui que
independente da responsabilização política e civil, deve o governador do Estado do Rio de Janeiro WILSON WITZEL ser responsabilizado criminalmente pelos crimes que decorrerem de sua ordem direta e de sua determinação dolosa para que agentes policiais (snipers) executem pessoas.
O parecer “Snipers: sua legalidade e responsabilidade do governador do Estado do Rio de Janeiro” é assinado pelo jurista mineiro Leonardo Isaac Yarochewsky, foi aprovado por unanimidade pela Comissão da OAB-RJ, mas precisará ser aprovado pela diretoria da OAB-RJ para ser encaminhado ao Ministério Público Estadual. Será o grande desafio da OAB-RJ, provar que se tornou uma peça de resistência contra a criminalidade que atingiu o estado, ou continuará vivendo de seu passado.
O histórico de violência
Segundo o parecer
“Em 2014, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram 3.022 casos, média de um homicídio (cometido por policial) a cada três horas. Número de vítimas que supera dos atentados de 11 de setembro nos EUA, em que 2.977 pessoas morreram. O número de mortes provocadas pela polícia em 2014 é 37,2% maior que o registrado em 2013. Em 2017, o Brasil teve 5.012 mortes cometidas por policiais na ativa, um aumento de 19% em relação a 2014”.
Em 2017, para cada dois policiais militares ou civis executados, 28 pessoas eram mortas por eles. Em 2018, foram mortas 1.444 pela polícia no Rio de Janeiro, de acordo com o Instituto de Segurança Pública. Foi o maior número de homicídios da polícia desde que começaram as estatísticas, em 1998.
Continua o parecer:
“A missão da polícia é proteger as pessoas, inclusive aquelas que moram em comunidades carentes”, disse DANIEL WILKINSON da Human Rights Watch. “O uso excessivo da força coloca todos em risco”.
A responsabilidade do sniper
Snipers (“atirador especial”, “atirador de elite” ou “franco-atirador”) é o policial militar ou membro das Forças Armadas especializado em tiros de longa distância e de “precisão”.
O parecer se baseia em uma entrevista de Witzel ao Globo, admitindo que os snipers estão sendo utilizados para matar traficantes nas favelas, “só que não há divulgação”. Para o governador do Rio “O protocolo é claro: se alguém está com fuzil, tem que ser neutralizado de forma letal”.
Depois, menciona reportagem do jornal Extra:
O Ministério Público e a Polícia Civil colheram um indício que reforça o relato de moradores de Manguinhos, na Zona Norte do Rio, sobre disparos feitos por snipers do alto da torre da Cidade da Polícia em direção à favela. O exame cadavérico de Rômulo Oliveira da Silva, de 37 anos – uma das vítimas fatais dos tiros feitos do alto da construção, segundo testemunhas e parentes -, mostra que o tiro que o atingiu veio de cima.
O laudo da autópsia, obtido com exclusividade pelo EXTRA, revela que o disparo entrou no corpo da vítima pelo peito e saiu pela “região lombar esquerda”, ou seja, pela base da coluna. Segundo o documento, a causa da morte foi “ferimento do coração”. O tiro, segundo o texto do perito Ronaldo Martins Junior, do Instituto Médico Legal (IML), percorreu a barriga de Rômulo e causou ferimentos no fígado, nas alças intestinais e no estômago.
O parecer cita diversos juristas, como Luís Augusto Sanzo Brodt, Raul Zaffaroni e Nilo Batista para sustentar que “ ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’ (art. 5º, inc. II CR)”.
Ou seja, no Estado de direito, a condição prévia
para obedecer a uma ordem é sua legalidade. O executor de uma ordem vinculante pode ser responsabilizado
“1º) desde que a ordem tenha por objeto a prática de ato manifestamente criminoso (…), ou 2º) quando a lesão antijurídica provenha de excesso nos atos ou na forma de execução…”
“Assim, não há, em hipótese alguma, como se cogitar da possibilidade dos chamados snipers estarem, nos casos em comento e de execução sumária, amparados pela excludente de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal”, constata.
A responsabilidade de Witzel
Em relação ao autor das ordens, governador Wilson Witzel, o parecer é duro.
“O que poderia ser considerado apenas uma verborragia de campanha ou mais um arroubo populista, ganhou forma de ordem a partir do momento em que WITZEL assumiu o governo do Estado do Rio”.
O chefe do Executivo é também o chefe das polícias civil e militar.
“A ordem do governador WILSON WITZEL para que policiais matem quem estiver portando fuzil – independentemente se ele estiver atacando os agentes de segurança ou terceiros – é inconstitucional e pode fazer com que o chefe do Executivo do Estado do Rio de Janeiro seja responsabilizado pelas mortes que ocorrerem em decorrência da sua ordem”.
O fato de instigar a polícia a cometer crimes se enquadra no Código Penal. O parecer cita Nilo Batista para quem “Instigação é a dolosa colaboração de ordem espiritual objetivando o cometimento de crime doloso. Meios de instigação podem ser todas as possibilidades de influência volitiva: persuasão, dádivas, promessa de recompensa, provocação de um erro de motivo, abuso de uma relação de subordinação, ameaça etc.”
O Código Penal brasileiro (art. 62, inc. III) prevê o agravamento da pena no caso do agente que: “instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade (…)”.
As conclusões
“Por tudo, o governador do Estado do Rio ao ordenar – ainda que por meio de palavras – que atiradores de elite (snipers) executem pessoas está instigando (determinando) por uma ordem ilegal a prática de crime por parte do autor. Assim, a execução, nos moldes defendidos pelo governador WILSON WITZEL, além de criminosa, é incompatível com o Estado democrático de direito.
Os próximos passos dependerão, agora, da PGR e da OAB-RJ. Poderão escrever um capítulo histórico, na contenção da selvageria que se abate sobre o país, ou sucumbir ao medo.
Nota Técnica no 1
Parecer da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ
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